J. Bras. Nefrol. 2009;31(2):132-8.

Insuficiência renal aguda em acidentes ofídicos por Bothrops sp. e Crotalus sp.: revisão e análise crítica da literatura

Resumo:

Indrodução: Acidente ofídico é um sério problema de saúde em todo o mundo. Neste artigo, fazemos uma revisão da literatura enfocando a principal complicação do acidente por serpentes: insuficiência renal aguda (IRA). Nosso trabalho destaca o envenenamento causado por Bothrops sp. e Crotalus sp., os dois gêneros de serpentes mais comuns no Brasil. O presente estudo aborda diversos aspectos da IRA nesse contexto, tais como epidemiologia, patogênese, características clínicas, fatores de risco, assim como prevenção e tratamento.

Descritores: insuficiência renal aguda, Crotalus, Bothrops, picada de cobra.

Abstract:

Introduction: Snakebites represent a serious problem all over the world. We reviewed the literature on the main complication of snakebites: acute renal failure (ARF). We emphasize Bothrops sp. and Crotalus sp. envenomation, since those are the most common poisonous snakes in Brazil. We focused on the different aspects of ARF in this context, such as epidemiology, pathogenesis, clinical characteristics, and risk factors, as well as prevention and treatment.

Descriptors: Acute renal failure, Crotalus, Bothrops, snakebite.

INTRODUÇÃO

Os acidentes ofídicos representam grave problema de saúde pública nas regiões tropicais devido à sua elevada incidência e morbimortalidade associada.1,2,3,4,5,6 Segundo estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 2,5 milhões de acidentes por serpentes venenosas são registrados anualmente em todo o mundo, resultando em 125.000 mortes.5,6,7 No entanto, é muito difícil determinar com segurança os verdadeiros números sobre os acidentes ofídicos. Estudos recentes estimam que o número anual de envenenamentos por serpentes possa chegar a 5,5 milhões, com cerca de 20.000 a 94.000 mortes.8,9 A maior parte dos acidentes ofídicos ocorre na África e na Ásia, e a America Latina aparece em terceiro lugar.7 

No Brasil, mais de 20.000 acidentes ofídicos são notificados anualmente ao Ministério da Saúde, com taxa de mortalidade de cerca de 0,45%.1,7 Aproximadamente 85% desses casos são causados por serpentes do gênero Bothrops1,3,4,10 e 7,7% pelo gênero Crotalus;3,4,6 a minoria restante dos acidentes é causada pelos gêneros Lachesis e Micrurus. A insuficiência renal aguda (IRA) é a principal complicação dos acidentes ofídicos e está associada a um aumento na mortalidade.3,6 Apesar de o acidente botrópico ser 10 vezes mais frequente que o acidente crotálico, o número absoluto de casos de IRA entre os dois gêneros é semelhante, devido à maior nefrotoxicidade dos acidentes crotálicos.3 A ocorrência do acidente ofídico está, em geral, relacionada a fatores climáticos1,2,4,5,10 e à atividade humana no campo.1,2,4 Os trabalhadores rurais do sexo masculino1,2,3,4,5,7,10,11 na faixa etária entre 15 e 49 anos são os mais vitimados.1,4 Os membros inferiores são os locais preferenciais de picada, seguidos dos membros superiores.1,3,4,5,7,10,11 

A identificação da serpente, quando possível, auxilia na avaliação da gravidade, prognóstico e tratamento adequado de um acidente ofídico. O principal elemento diferenciador entre serpentes peçonhentas e não peçonhentas é a fosseta loreal, orifício termorreceptor situado entre o olho e a narina (Figura 1a). De modo geral, as serpentes peçonhentas apresentam fosseta loreal e dentes inoculadores bem desenvolvidos e móveis na região anterior da maxila. Em seguida, a forma da cauda ajuda na identificação do gênero: cauda lisa caracteriza Bothrops; cauda com guizo caracteriza Crotalus; e cauda com escamas eriçadas, Lachesis (Figura 1b). As cobras do gênero Micrurus não possuem fosseta loreal e apresentam aparelho inoculador pouco desenvolvido e fixo na região anterior da maxila, mas também são peçonhentas e constituem, portanto, uma exceção à regra (Figura 2). Essas serpentes, popularmente conhecidas como corais, possuem características próprias, como anéis coloridos vermelhos, pretos e brancos. É importante lembrar a existência da coral falsa, serpente não peçonhenta com padrão de coloração semelhante a Micrurus.1


Figura 1. Fosseta loreal e tipos de cauda entre serpentes peçonhentas. a) Fosseta loreal: orifício termorreceptor situado entre o olho e a narina (seta). b) Caudas de Lachesis (à esquerda, com escamas eriçadas), Bothrops (no meio, lisa) e Crotalus (à direita, com guizo).
Figura 2. Fluxograma para identifi cação de serpentes peçonhentas e não peçonhentas.

Mesmo quando a serpente não é capturada, a diferenciação entre acidente crotálico e botrópico pode, muitas vezes, ser feita com base nas manifestações clínicas apresentadas pela vítima. Em geral, o acidente crotálico se caracteriza por manifestações leves no local da picada e manifestações sistêmicas importantes, enquanto no acidente botrópico costuma ocorrer o inverso (Tabela 1).

Bothrops sp.: No acidente botrópico, o veneno fica concentado no local da picada,12 causando forte lesão proteolítica, e esta é a principal característica desse tipo de acidente. Dor e edema local estão presentes em quase todos os casos, podendo haver também equimoses, bolhas, necrose e formação de abscessos. O veneno botrópico possui também ação hemorrágica e nefrotóxica,12 ocasionando manifestações clínicas sistêmicas que, embora menos frequentes que no acidente crotálico, podem ser graves. As principais complicações locais são as infecções secundárias e gangrena. Do ponto de vista sistêmico, podem ocorrer grandes hemorragias, choque circulatório e IRA.10,13 Alterações no tempo de coagulação são observadas em grande proporção de pacientes, com incoagulabilidade chegando a mais de 40% em um estudo.10 

Crotalus sp.: No acidente crotálico, o quadro clínico é determinado pelas ações miotóxica, neurotóxica, coagulante e nefrotóxica da peçonha,3,12 podendo variar desde casos assintomáticos até casos com IRA, choque circulatório e morte. No local da picada, é comum ocorrer apenas parestesia, eritema, dor e edema discretos, enquanto as manifestações sistêmicas costumam dominar o quadro clínico. O paciente pode referir diplopia, turvação visual, e ao exame físico apresentar midríase, ptose palpebral (uni ou bilateral) e flacidez da musculatura da face, caracterizando a facies neurotóxica. As queixas de mialgia e escurecimento da urina também são frequentes e refletem rabdomiólise e mioglobinúria. Outros achados menos frequentes incluem manifestações de sangramento como gengivorragia e epistaxe, além de queixas inespecíficas, como vômitos, sonolência, mal-estar e sensação de corpo estranho na garganta.3,14 As principais complicações são IRA, insuficiência respiratória e choque circulatório. Alterações laboratoriais incluem marcadores de lesão muscular elevados (CPK, AST, ALT, LDH) e alteração no tempo de coagulação.3,6

INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA

Bothrops sp.:

Incidência de IRA: A IRA no acidente botrópico costuma ser infrequente, com incidência variando entre 1,6 a 5% dos acidentes.10,13,15,16 No entanto, um trabalho realizado apenas com a espécie Bothrops jararacussu revelou uma incidência de IRA de 13%, sugerindo haver diferenças quanto à nefrotoxidade do veneno entre as espécies de Bothrops sp.17 Adicionalmente, diferenças na definição de IRA podem explicar as variações na incidência de IRA entre os diversos estudos.

Patogênese: Apesar de, após a inoculação, grande parte da peçonha botrópica permanecer na pele e, portanto, causar alterações predominantemente locais, efeitos sistêmicos como IRA podem ocorrer em uma minoria de pacientes. A patogênese da lesão renal no acidente botrópico ainda não está bem elucidada. Através de estudos experimentais utilizando rim isolado, ficou comprovado que a peçonha botrópica é capaz de provocar toxicidade tubular renal.18 Outros autores sugerem ação proteolítica direta do veneno sobre os glomérulos,19 que é acompanhada de alterações morfológicas.20 No entanto, no animal intacto, outros fatores podem indiretamente contribuir para o desenvolvimento de IRA, como rabdomiólise e hemólise, principalmente quando acompanhadas de hipovolemia, além das alterações sobre o sistema de coagulação, que podem levar à deposição de fibrina nos capilares glomerulares.21 Por fim, algumas frações do veneno, como a Bothropstoxin-1, que é uma das principais frações da peçonha da Bothrops jararacussu, possuem ação “fosfolipase A2-like”.22 A fosfolipase A2 é uma enzima capaz de promover a liberação de ácido araquidônico da membrana celular. O ácido araquidônico, por sua vez, é matéria-prima para a formação de mediadores inflamatórios, como os prostanoides (prostaglandinas e tromboxana), que possuem ação vasoativa e, portanto, são capazes de alterar a hemodinâmica glomerular e a taxa de filtração glomerular.

Características da IRA: A IRA ocorre quase sempre nas primeiras 24 horas do acidente, podendo evoluir, porém, com redução do débito urinário apenas no segundo ou terceiro dia.23,24,25 O atraso na soroterapia é considerado um importante fator de risco para IRA,10,11,13,26,27 embora haja relatos na literatura de ocorrência de IRA apesar da administração do soro em tempo considerado adequado.24,25 Na grande maioria dos casos (cerca de 90%), a IRA no acidente botrópico é oligúrica.24,25,28 A duração da fase oligúrica varia de 1 a 3 semanas, com média de cerca de duas semanas (13,5 ± 5,8 dias na série de Amaral et al.24 e 11,25 ± 3,73 dias no estudo de Da Silva et al.25). Pode haver proteinúria e hematúria no sedimento urinário.10,27 A lesão renal mais comum no acidente botrópico é a necrose tubular aguda, porém alguns casos evoluem com necrose cortical bilateral.1,28,29 Na casuística de Amaral et al.,24 aproximadamente 22% dos casos de IRA apresentaram necrose cortical, da qual se suspeitou quando os pacientes mantiveram oligoanúria ou níveis elevados de ureia e creatinina por mais de 3 semanas. Nesses casos, a confirmação diagnóstica deve ser feita com biópsia renal. Tardiamente, exames radiográficos podem demonstrar calcificação do parênquima renal.23,25,29 Estes pacientes evoluem para doença renal crônica e apresentam maiores taxas de mortalidade.

Estudos com pacientes internados por acidente botrópico em unidades de terapia intensiva no final da década de 1970 e início da década de 1980 demonstraram mortalidade de cerca de 20%, sendo a maioria por edema agudo de pulmão na fase oligúrica. Nesses estudos, uma média de 74% dos pacientes necessitaram de diálise.24,25 

Fatores de risco para IRA: O intervalo de tempo entre o acidente e a administração do soro antibotrópico é o principal fator determinante para IRA e tem relação direta com sua incidência.7,10,11,13,26,27 Adicionalmente, a idade parece ser também um fator importante. Alguns estudos indicam uma maior tendência à IRA nos pacientes mais velhos,15,30 com maior mortalidade nessa população.11 Pode-se especular que a maior susceptibilidade à IRA após acidente ofídico no idoso se deva à sua menor massa renal funcionante (fisiológica, associada ao envelhecimento, ou secundária a uma nefropatia de base, hipertensiva, diabética ou isquêmica, que são mais comuns nessa população). Em um estudo, houve maior incidência de IRA em crianças.26 Não é bem determinado se a gravidade da lesão local (edema importante, bolhas, equimoses) ou das manifestações sistêmicas (como sangramentos) seja fator associado à IRA.1,15 Outros fatores, como uso de torniquete e incoagulabilidade sanguínea, não têm sido consistentemente associados a maior risco de IRA.15,31 

Prevenção e tratamento: A principal forma de prevenir a lesão renal no acidente botrópico é a soroterapia precoce e adequada. Adicionalmente, outras medidas gerais devem ser observadas para não somar insultos nefrotóxicos: 1) evitar uso de contraste iodado para exames de imagem; 2) evitar analgesia com anti-inflamatórios não esteroides; 3) evitar antibióticos nefrotóxicos. É preciso também garantir uma perfusão renal adequada através de soroterapia e outras medidas de suporte hemodinâmico. Infelizmente, não há estudos de alto nível avaliando diferentes estratégias de prevenção de IRA no acidente botrópico. Nenhuma recomendação baseada em evidências pode, portanto, ser feita quanto ao tipo ou quantidade de reposição volêmica a ser utilizada, bem como a respeito do uso de furosemida, manitol, ou dopamina. Do mesmo modo, não há estudos que permitam recomendações específicas sobre o momento adequado de iniciar tratamento dialítico, modalidade ou dose de diálise. Na prática clínica, recomenda-se seguir as mesmas estratégias em vigor para o manejo da necrose tubular aguda em outros contextos, como na sepse.32,33 

Crotalus sp.:

Incidência de IRA: Sabe-se que a IRA no acidente crotálico é bem mais frequente que no botrópico. No entanto, a incidência depende diretamente do critério utilizado para definir IRA: critérios mais sensíveis resultam em maior incidência e vice-versa. Como afirmado anteriormente, um dos grandes problemas da literatura na área de IRA é que, durante muitos anos, diferentes estudos utilizaram diferentes definições, resultando em incidências muito variadas. Estudos mais antigos revelavam uma incidência de IRA no acidente crotálico variando de 12% a 18,4%,14,34,35 porém um estudo recente que utilizou um critério mais sensível de IRA (taxa de filtração glomerular < 60 mL/min./1,73 m2) encontrou uma incidência de 29%.6 Torna-se, portanto, imperativo que os novos estudos adotem um critério único de IRA, como o sugerido por um painel de expecialistas em 2004.36 

Patogênese: No acidente crotálico, os rins apresentam concentrações do veneno até 50% maiores do que a concentração plasmática.37 Como a peçonha é de excreção predominantemente renal, os mecanismos de concentração e transporte tubular favorecem a ocorrência de toxicidade celular direta. Em estudos experimentais utilizando rim isolado, pesquisadores demonstraram que a crotoxina é o principal componente responsável pela toxicidade renal direta da peçonha crotálica, seguida da girotoxina.38,39 Além desse efeito tóxico tubular, outros fatores estão certamente envolvidos na patogênese da IRA. A fosfolipase A2 também está presente no veneno crotálico, e Martins et al. demonstraram que células endoteliais40 e do sistema imune, como macrófagos,41 são capazes de produzir mediadores inflamatórios derivados do ácido araquidônico em resposta ao veneno crotálico. Como exposto acima, esses mediadores podem contribuir para IRA através de ações predominantemente hemodinâmicas. Mas talvez seja a rabdomiólise o principal mecanismo de lesão renal no acidente crotálico. A maior frequência de rabdomiólise no acidente crotálico do que no botrópico é um dos fatores que podem explicar a maior nefrotoxicidade do acidente crotálico. Uma análise detalhada dos mecanismos de lesão renal na rabdomiólise não é objetivo deste artigo, mas pode ser encontrada no trabalho de Vanholder et al..42

Características da IRA: No acidente crotálico, a fase oligúrica tende a ter duração um pouco menor que no acidente botrópico, variando de cerca de 6 a 14 dias24,25 (média de 9,6 ± 4 dias na série de Amaral et al.24 e de 8,93 ± 3,73 dias no estudo de Da Silva et al.25). Assim como no acidente botrópico, a maioria dos casos de IRA ocorre precocemente, antes das primeiras 24 horas, com alguns casos iniciando a fase oligúrica em até três dias.24,25 A IRA secundária à picada por cascavel pode evoluir com oligúria24,25,28,43 ou com débito urinário normal,6,24,25,44 dependendo, provavelmente, do grau de lesão renal. Estudos com pacientes em UTIs, teoricamente mais graves, revelaram que a maioria evoluiu com oligúria,24,25 enquanto pacientes diagnosticados com IRA por parâmetros mais sensíveis, ou seja, incluindo pacientes menos graves, tiveram em sua maioria débito urinário normal.6 Nesse tipo de acidente, quase todos os casos são devidos à necrose tubular aguda, não havendo relatos de casos de necrose cortical,1,24,28,43 o que evidencia diferentes mecanismos fisiopatológicos da lesão renal em relação ao acidente botrópico. Como consequência, raramente um paciente com IRA secundária a um acidente crotálico irá evoluir com doença renal crônica e necessidade de diálise de manutenção. Há relato de nefrite intersticial aguda atribuída à reação ao soro administrado.45 Um estudo recente evidenciou que apenas 24% das vítimas de acidente crotálico necessitaram de diálise,6 dado discrepante em relação a estudos mais antigos, nos quais cerca de 69% dos pacientes necessitaram de diálise, sendo a diálise peritoneal o método mais utilizado no passado.24,25

Fatores de risco para IRA: Atraso no tratamento, facies miastênica, mialgia e elevação acentuada de enzimas musculares são fatores que se correlacionam à IRA.6 Assim como no acidente botrópico, é bem estabelecido o atraso na soroterapia como fator determinante de IRA.6,7,26,34,35,46,47,48 O atraso no atendimento determina maior gravidade dos casos, mais complicações e maior incidência de IRA, o que demonstra a necessidade de um atendimento descentralizado aos pacientes.

Estudos retrospectivos sobre IRA no acidente crotálico evidenciaram mialgia e facies neurotóxica como fatores preditivos de IRA em pacientes acima de 40 anos.35 Um estudo prospectivo recente demonstrou que todos os pacientes que evoluíram para IRA tinham mialgia e facies neurotóxica.6 Marcadores de lesão muscular tendem a se elevar tanto nos pacientes que desenvolvem IRA quanto naqueles que não evoluem com IRA. Porém, os níveis de CK, AST, ALT e LDH são significativamente mais elevados nos pacientes que desenvolvem IRA. Nível de CK maior que 2.000 U/L é fator de risco para IRA.6,7 A urina avermelhada, decorrente da mioglobinúria, ocorre em mais de 80% dos acidentes crotálicos,6,35,47,48 não sendo portanto um bom parâmetro clínico para identificar pacientes com maior risco de desenvolver IRA.6,35 É controverso se a idade do paciente tem influência na evolução para IRA no acidente crotálico. Estudos retrospectivos mostraram uma relação positiva entre IRA e a idade avançada.35 Em outros estudos,6,26 pacientes mais jovens tiveram maior tendência a cursar com IRA, apesar de a incidência de IRA em crianças variar de acordo com a média geral.46,48 Dessa forma, diante de estudos inconclusivos sobre esse aspecto, é recomendada maior atenção com os pacientes nos extremos da faixa etária. A diurese adequada na admissão (> 90 mL/h) parece ser um fator protetor contra IRA.6,7 Manter o fluxo urinário elevado é também uma estratégia de prevenção de IRA no acidente crotálico, visando a reduzir a exposição das células tubulares ao veneno e à mioglobina. O tempo de coagulação na admissão não tem valor prognóstico para IRA, podendo estar prolongado ou não, tanto nos acidentes leves como nos graves,1,6 apesar de estar mais frequentemente alterado nos pacientes que evoluem com IRA.6 Nos pacientes que são picados por cascavel, podem ser encontradas alterações no sedimento urinário, tais como glicosúria, proteinúria, leucocitúria, células epiteliais e cilindros,6,34,44,49 sendo muito mais frequentes nos pacientes com diagnóstico de IRA.6 Esses pacientes apresentam fração de excreção de sódio elevada, como esperado na necrose tubular aguda.6 Tanto no acidente botrópico quanto no crotálico são comuns complicações decorrentes da IRA, como distúrbios hídricos, eletrolíticos, hematológicos, respiratórios, neurológicos e hemodinâmicos. Hipercalemia e uremia são os distúrbios mais comuns,24,25,27,28 além de tendência à hiperfosfatemia e hipocalcemia.34,43,48,49 Estudos em unidades intensivas mostraram uma mortalidade de cerca de 13% entre os pacientes que evoluíram com IRA.24,25 Adicionalmente, a ocorrência de IRA aumenta o tempo e os custos da hospitalização.6,24,25 

Prevenção e tratamento: As medidas gerais descritas na prevenção da IRA no acidente botrópico também são válidas no acidente crotálico: 1) soroterapia precoce e adequada; 2) evitar nefrotoxinas; 3) evitar hipovolemia. No entanto, devido à alta prevalência de rabdomiólise no acidente crotálico, algumas medidas específicas para manejo da IRA por rabdomiólise são aplicáveis nesses casos. Tais medidas visam a prevenir/corrigir os fatores que predispõem à IRA na rabdomiólise, como depleção de volume, obstrução tubular, acidúria e elevação dos radicais livres.42 Vale ressaltar que não há estudos avaliando diferentes estratégias de manejo da rabdomiólise no acidente crotálico; as recomendações que se seguem são extrapoladas de estudos com rabdomiólise em outros contextos.

A principal medida para prevenir ou reduzir lesão renal é estabelecer um alto fluxo urinário para diminuir a concentração intratubular de mioglobina, diminuir o tempo de exposição das células tubulares ao pigmento e minimizar os riscos de precipitação e consequente obstrução tubular por mioglobina. Essa meta pode ser alcançada através da administração de expansão volêmica vigorosa e, posteriormente, diuréticos. Vale frisar que o uso de diuréticos deve ser reservado apenas para pacientes que já tiverem recebido expansão volêmica adequada.

Com relação à expansão volêmica, não existem regras específicas quanto à quantidade ou tipo ideais de fluido. O uso de cloreto de sódio a 0,9% parece ser plenamente adequado, mas alguns autores sugerem a utilização de solução de bicarbonato de sódio. A administração de bicarbonato tem como possíveis vantagens atenuar a acidemia, reduzir a tendência à hipercalemia e, por alcalinizar a urina, reduzir a tendência à precipitação intratubular de mioglobina. Em uma revisão recente sobre o tema, foi sugerida expansão volêmica com um mínimo de 3-6 litros/dia, podendo chegar até a mais de 10 litros/dia, desde que haja monitoração adequada do paciente. Os mesmos autores sugerem que, para cada litro de solução isotônica de cloreto de sódio seja feito um litro de solução de bicarbonato de sódio (100 mmol em 1 litro de glicose a 5%) com 10 mL de manitol a 15%.42 Uma vantagem teórica do manitol sobre a furosemida é que esta última acidifica a urina, fato indesejável na rabdomiólise.

Vale ressaltar que a expansão volêmica vigorosa deve ser evitada em pacientes oligúricos ou anúricos, com elevação importante de escórias nitrogenadas. Nesses casos, a lesão renal já foi estabelecida e a reposição volêmica não reverte o processo, podendo provocar hipervolemia e edema pulmonar e colocando em risco a vida do paciente. O mesmo vale para o manitol e para o bicarbonato de sódio; este último pode ainda causar alcalose metabólica importante em pacientes com IRA severa oligoanúrica. Lembramos também que a solução de Ringer lactato, muito utilizada para expansão volêmica em emergências e UTIs, contém cloreto de potássio, devendo, portanto, ser evitada em pacientes hipercalêmicos e/ou com IRA oligoanúrica estabelecida.

Assim como no acidente botrópico, não há dados suficientes na literatura que nos permitam fazer recomendações específicas sobre o tratamento dialítico na IRA por acidente crotálico.

CONCLUSÕES 

IRA é a principal complicação dos acidentes ofídicos, podendo ocorrer tanto nos acidentes botrópicos como nos crotálicos. Embora os acidentes crotálicos sejam mais nefrotóxicos, o número absoluto de casos de IRA entre os dois tipos de acidente acaba sendo semelhante, simplesmente pelo maior volume de acidentes botrópicos. A necrose tubular aguda é a lesão renal mais frequente nos dois tipos de acidente e costuma ser reversível. No entanto, alguns pacientes com IRA por acidente botrópico desenvolvem necrose cortical bilateral e evoluem para doença renal crônica, com necessidade de terapia renal substitutiva de manutenção. Soroterapia tardia e inadequada é um importante fator de risco para IRA no ofidismo. São escassos os dados de alto nível na literatura, avaliando estratégias de prevenção e tratamento de IRA especificamente no acidente ofídico. O manejo desses pacientes, portanto, acaba sendo semelhante ao dos pacientes com IRA por outras causas.

AGRADECIMENTOS 

Nossos sinceros agradecimentos a Fábio Barbosa do Centro de Informações Antiveneno (CIAVE) do Estado da Bahia, pelas fotografias expostas nesta revisão.

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1. Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia

Correspondência para:
Paulo N. Rocha
Rua Alberto Valença, 148/apt. 203, Pituba
Salvador – Bahia – CEP: 41810-825
Tel: (71) 3344-0727
E-mail: paulonrocha@ufba.br

Este trabalho recebeu apoio do programa PERMANECER, Universidade Federal da Bahia.

Data de submissão: 30/11/2008
Data de aprovação: 19/03/2009

Insuficiência renal aguda em acidentes ofídicos por Bothrops sp. e Crotalus sp.: revisão e análise crítica da literatura

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