J. Bras. Nefrol. 2009;31(2):154-62.

Diagnóstico da hepatite C em pacientes com doença renal crônica em hemodiálise: qual a melhor estratégia?

MLP Oliveira, DD Castilho, C Perone, AH Oliveira, T Espíndola, KBF Zocratto, E Bassetti-Soares, RD Cambraia, R Teixeira

Resumo:

Introdução: Pacientes com doença renal crônica (DRC) em hemodiálise (HD) têm alto risco de adquirir o vírus C da hepatite (HCV), comparados à população em geral, face à exposição frequente ao sangue e à contaminação nosocomial. Entretanto, o diagnóstico da hepatite C nesses pacientes é dificultado por sintomas inespecíficos, valores normais de alanina aminotransferase (ALT), na maioria dos casos, sorologia falso-negativa e baixa viremia. Objetivo: definir e avaliar a acurácia dos métodos diagnósticos da hepatite C em pacientes em HD. Métodos: foram avaliados 500 pacientes com DRC em HD, com anti HCV negativo, histórico e prospectivo de três meses, e avaliação de uma amostra de HCV RNA qualitativo e ALT mensal durante o seguimento. Foram excluídos pacientes com diagnóstico prévio de hepatite B e C, HIV, transplantados, em diálise peritoneal e com acesso venoso por cateter duplo-lúmen. Resultados: o tempo médio de HD foi de 48,8 ± 41,2 meses; ALT revelou-se normal em 92%; anti-HCV e HCV RNA negativos em 99,8% dos pacientes; apenas um paciente (0,2%) apresentou viremia positiva, ALT normal e anti HCV falso-negativo durante o período de seguimento. Conclusões: o teste anti-HCV e a ALT não detectaram precocemente a hepatite C em paciente renal crônico com viremia positiva, o que pode ser explicado pelo comprometimento da resposta imune associada à uremia, ou devido ao período prolongado de janela imunológica antes da soroconversão. Entretanto, o valor preditivo negativo do anti-HCV foi alto, sugerindo que uma redução no intervalo de seis meses da dosagem do anti-HCV pode ser uma estratégia para o monitoramento e a detecção precoce da hepatite C nesses pacientes.

Descritores: hepatite C, doença renal crônica, métodos diagnósticos, hemodiálise.

Abstract:

Introduction: Patients with end-stage renal disease (ESRD) on hemodialysis (HD) are at a higher risk of infection with hepatitis C virus (HCV), when compared to the general population, due to frequent blood exposure and nosocomial infections. However, the diagnosis of hepatitis C in those patients is very difficult due to non-specific symptoms, normal alanine aminotransferase (ALT) levels, in most cases, false-negative serology, and low viral load. Objective: To define and evaluate the accuracy of hepatitis C diagnostic methods on HD patients. Methods: Five hundred HD patients with ESRD, negative anti-HCV in the past, and, for the next three months, underwent monthly qualitative HCV RNA and ALT testing during follow-up. Patients with a diagnosis of hepatitis B and C, HIV, with kidney grafts, in peritoneal dialysis, and with venous access with double-lumen catheter were excluded. Results:Mean time of HD was 48.8 ± 41.2 months; it was detected normal ALT in 92% of patients; negative anti-HCV and HCV RNA in 99.8% of patients; only one patient (0.2%) showed positive viremia, normal ALT, and false-negative anti-HCV during the follow-up period. Conclusions: Anti-HCV and ALT did not allow early detection of hepatitis C in a patient with ESRD and positive viremia, which can be explained by the disruption of the immune response associated with uremia or due to the prolonged immunologic window before seroconversion. However, anti-HCV showed a high negative predictive value, suggesting that a reduction in the six-month interval of the anti-HCV test could be a strategy for monitoring and early detection of hepatitis C in those patients.

Descriptors: hepatitis C, end-stage renal disease, diagnostic methods, hemodialysis.

INTRODUÇÃO

A hepatite C é a principal doença hepática entre pacientes com doença renal crônica (DRC) em programa de hemodiálise (HD).1 O avanço no diagnóstico desta infecção tornou possível desenvolver estudos de prevalência da doença e observar que a infecção pelo HCV em Unidades de Diálise (UD) é notadamente maior (7,6 a 63%) do que na população geral (3%), sugerindo que os pacientes com DRC submetidos à diálise apresentam alto risco de adquirir a infecção, embora tenha sido observada uma queda em sua prevalência há cerca de três anos, pela adoção rigorosa de medidas de precaução universais.2,3,4,5,6 Atualmente, os fatores de risco específicos mais importantes para se adquirir a hepatite C são a modalidade de terapia renal substitutiva (TRS) e o tempo em diálise. Assim, estima-se em 10% ao ano o risco de se adquirir o vírus C em HD, que pode ocorrer mesmo na ausência de fatores de risco reconhecidos, o que é relevante para a possibilidade de transmissão nosocomial, através de procedimentos relacionados às punções venosas frequentes e ao uso de equipamentos comuns em pacientes sob TRS em HD, o que não se observa naqueles em diálise peritoneal (DP).7,8

O diagnóstico da hepatite C em pacientes com DRC é dificultado em razão do quadro clínico inespecífico, semelhante aos sintomas de uremia, dos níveis normais ou flutuantes de ALT em cerca de 50% dos pacientes com hepatite C crônica, da sorologia falso-negativa para o HCV e também da baixa viremia observada nesses pacientes.9,10 

O teste de triagem sorológica anti-HCV pelo método imunológico Enzyme-Linked Immunosorbent Assay (ELISA), de 3ª geração, vem sendo utilizado há mais de uma década em UD para identificar a conversão sorológica ou a hepatite C crônica. Em geral, a soroconversão pelo teste de ELISA de 3ª geração ocorre cerca de 7 a 8 semanas, e até 12 semanas após a infecção, com pequena variação entre os pacientes imunocompetentes e aqueles com DRC, respectivamente. Contudo, a viremia pode ser detectada por métodos de biologia molecular nesse período.10,11,12

Atualmente, o teste anti-HCV é realizado a cada seis meses nas UD, na ausência de elevações de ALT, sendo esta periodicidade preconizada para monitorar a ocorrência de novas infecções pelo HCV, com detecção da infecção aguda em até 97% dos pacientes.13,14 Tem-se relatado, em alguns estudos, que de 0,8 a 2,3% dos pacientes com DRC apresentam sorologia falso-negativa, a despeito da viremia do HCV ser confirmada por testes de biologia molecular.15,16,17,18,19,20,21 

O exame de biologia molecular permite identificar o HCV em indivíduos imunossuprimidos, como nos pacientes com DRC em HD, em até três semanas. Tem-se observado ainda que a PCR qualitativa pode apresentar resultados negativos em pacientes com DRC em HD, em razão da oscilação da viremia, atribuída ao procedimento dialítico. O nível sérico do HCV RNA pode ser significativamente reduzido após a sessão de HD. Portanto, a amostra do sangue para esse exame deve ser colhida antes de iniciar o procedimento dialítico. 22,23,24 Contudo, em trabalhos mais recentes, a baixa carga viral desses pacientes é atribuída mais à resposta imune comprometida do que intrinsecamente ao procedimento dialítico.25 Atualmente, dispõe-se de duas técnicas para detecção do ácido ribonucleico (RNA) viral, a reação em cadeia da polimerase (PCR) e a amplificação mediada por transcrição (TMA), com detecção de 50 UI/mL e de 10 UI/mL, respectivamente, e especificidade próxima a 100% para ambas as técnicas.21 

Alguns estudos sugerem que existem benefícios potenciais na realização da PCR na rotina periódica das UD, como a identificação de pacientes com viremia presente e sorologia falso-negativa e a identificação precoce da hepatite C aguda na vigência do aumento da ALT.16,17,20,22 Entretanto, os testes de biologia molecular não devem ser considerados exames protocolares na rotina das UD, em razão do seu elevado custo.10 

Os pacientes com DRC avançada apresentam comprometimento geral da resposta imune. Este fato tem sido atribuído à própria uremia, à associação de múltiplas doenças crônicas e, ainda, aos fatores relacionados à TRS, como a modalidade (HD) e o tempo de diálise. A DRC e suas comorbidades causam anemia e desnutrição, fatores que contribuem para diminuir a resposta imune; o tratamento em HD, caso não sejam seguidas as diretrizes propostas, pode acentuar estas alterações. Os pacientes urêmicos produzem títulos baixos de anticorpos neutralizantes contra antígenos de superfície, aumentando os riscos de infecções pelos vírus da hepatite B e C, fato que pode explicar resultados de exames soronegativos. 26,27

Na última década, alguns estudos buscaram analisar os métodos diagnósticos da hepatite C nas UD. Contudo, a melhor estratégia propedêutica da infecção pelo HCV em pacientes com DRC permanece indeterminada. Há controvérsias a respeito da confiabilidade dos testes bioquímicos, sorológicos e de biologia molecular. Assim, se justificam os estudos que visam à identificação da confiabilidade dos métodos de diagnóstico da hepatite C nesse grupo específico de pacientes. O diagnóstico precoce da infecção pelo vírus C tem, como principais vantagens, a instituição do tratamento na fase aguda da doença, aumentando as chances de resposta terapêutica, e a identificação precoce dos pacientes recém-infectados, permitindo a adoção de medidas que visam ao controle da disseminação da infecção nas UD. Mesmo que a prevalência da hepatite C esteja em queda, a doença ainda causa um grande impacto nesta população de pacientes devido à possibilidade de evolução crônica e da exclusão desses pacientes como candidatos ao procedimento de transplante renal, o que comprometeria sensivelmente a sua evolução e a sobrevida do enxerto, além de tornar o tratamento inexequível.

Neste estudo, buscou-se verificar a acurácia dos métodos diagnósticos de detecção da hepatite C em pacientes com DRC submetidos a HD, com sorologia histórica negativa para o vírus C; avaliar a confiabilidade do teste sorológico anti-HCV (EIA, 3ª geração) em relação à ALT e à PCR, na detecção precoce da infecção pelo HCV, em pacientes com DRC em HD; e avaliar a periodicidade apropriada da realização do anti-HCV, para diagnosticar precocemente a hepatite C aguda nesses pacientes.

MÉTODOS

DESENHO DO ESTUDO

Estudo de caráter descritivo desenhado pelo método de estudo de painéis, no qual se realizaram cortes seccionais, durante o período de acompanhamento dos indivíduos participantes, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.

CÁLCULO AMOSTRAL

Para o cálculo da amostra, considerou-se a prevalência previamente descrita de hepatite C, nos pacientes com DRC em programas de HD, que foi variável entre 10 e 50%, sendo em Belo Horizonte de 12%.5,8,28,29 A prevalência de sorologia (EIA, 3ª geração) falso-negativa para o HCV, previamente descrita em alguns estudos, variou de 0,8% a 2,3%.11,15,17 Considerando-se como referência a prevalência mínima de 10% de sorologia positiva para o HCV em pacientes com DRC em HD e o erro-padrão entre 2 e 3%, uma amostra de 500 (43,9%) pacientes foi representativa, ou seja, correspondeu a 24,23% da população em diálise de Belo Horizonte, partindo do total de 2.063 pacientes distribuídos em 13 UD operantes em Belo Horizonte. Foi realizado um sorteio aleatório simples de 6 UD para participar da pesquisa, em um total de 1.266 pacientes, e, destes, 1.138 (89,8%) pacientes apresentavam anti-HCV negativo e foram elegíveis para o estudo. Após novo sorteio de 500 pacientes, eles foram distribuídos em conglomerado nas 6 UD. A amostragem do estudo está representada na Figura 1.


Figura 1. Amostragem do estudo.

CRITÉRIOS DE INCLUSÃO E EXCLUSÃO

Os critérios de inclusão estabelecidos foram: pacientes em HD há mais de três meses, com acesso venoso por fístula arteriovenosa, de qualquer idade, cor ou sexo, e com qualquer nível de instrução; sorologia negativa para HCV, HBV e HIV nos três meses anteriores, no momento do sorteio e nos três meses consecutivos; disponibilidade dos resultados de ALT mensal e do anti-HCV no início do estudo (mês -3), na ocasião da coleta do sangue para o exame de biologia molecular (mês zero) e no final (mês +3) do seguimento de seis meses.

Foram excluídos pacientes com diagnóstico prévio de hepatite viral aguda e síndrome da imunodeficiência adquirida; pacientes em diálise peritoneal (DP) e acesso venoso por cateter de duplo lúmen; pacientes internados com DRC descompensada e infecções graves; pacientes transplantados, com alta do programa de HD ou que evoluíram para óbito depois de incluídos.

PROTOCOLO DE SEGUIMENTO

Foram incluídos pacientes com três sorologias mensais prévias (denominados mês -3, mês -2 e mês -1) negativas para o vírus C (anti-HCV, ELISA, 3ª geração). Procedeu-se à coleta de uma amostra de sangue para a realização do exame de biologia molecular (HCV RNA qualitativo pela PCR, Amplicor HCV Roche 2.0) no mês denominado zero, na demarcação da janela imunológica do anti-HCV e, a partir daí, obteve-se um seguimento prospectivo do anti-HCV por um período de três meses (mês +1, mês +2 e mês +3), além da ALT (Bioclin) obtida mensalmente, conforme demonstrado na Figura 2. Sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo (VPP) e valor preditivo negativo (VPN) de cada um desses exames estão relacionados na Tabela 1.


Figura 2. Seguimento do estudo.

Estabeleceu-se o período de seguimento de três meses, antes e após a coleta dos dados e da amostra de sangue, para o teste de biologia molecular de detecção do vírus C, porque esse período constitui o tempo previsto para eventual soroconversão da fase aguda da infecção pelo HCV e inclui o período da chamada janela imunológica, considerando-se que o anti-HCV se torna positivo cerca de sete a 12 semanas após a aquisição da infecção nos pacientes com DRC em diálise.23 As informações epidemiológicas foram obtidas através de questionário estruturado e de consulta nos prontuários médicos disponíveis nas UD.

PROTOCOLO DA COLETA DE SANGUE

As amostras de sangue foram coletadas através das linhas de acesso venoso, passivamente e sem vácuo, imediatamente após a conexão na fístula arteriovenosa e antes da administração da heparina. O sangue foi coletado em tubos de 4,5 mL, contendo EDTA (etileno-diamino-tetraacético), que foram armazenados em caixas térmicas, contendo gelo em gel e encaminhados imediatamente ao laboratório de biologia molecular para processamento e armazenamento. Todos os procedimentos com alíquotas da amostra de sangue foram realizados em prazo inferior a duas horas após a coleta. As amostras foram centrifugadas por 10 minutos, a 4.000 rpm, em centrífuga Herme Z 323, e as alíquotas identificadas, divididas em duas frações de um mililitro e armazenadas em refrigerador a – 70oC até a realização do exame de biologia molecular.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

O cálculo amostral se baseou nos estudos de prevalência, já descritos anteriormente. Procedeu-se à análise descritiva e foram utilizadas medidas de tendência central (média) e de variabilidade (desvio-padrão) que evidenciassem as características dos achados, calculando apenas o VPN do anti-HCV, uma vez que testes de alta sensibilidade terão elevado VPP em populações de elevada prevalência da doença. Foi intenção inicial caracterizar a amostra de pacientes com sorologia negativa para o HCV em relação às variáveis demográficas (idade, sexo, cor e escolaridade) e aos fatores de risco para a aquisição dessa infecção nas UD (transfusão de hemoderivados, tempo e modalidade da diálise, cirurgias prévias, injeções em farmácias comerciais, uso de drogas ilícitas com seringas compartilhadas, tatuagens e uso de piercing), além de avaliar a confiabilidade do teste sorológico anti-HCV (EIA, 3ª geração) em relação à ALT e à PCR na detecção precoce da infecção pelo HCV nestes pacientes. O método de estudo de painéis foi adaptado para análise, uma vez que os dados demográficos obtidos não apresentaram correlação com os resultados, e, dentre os fatores de risco, o convívio em ambiente nosocomial é o mais significativo, o que é comum a todos os pacientes investigados.

ASPECTOS ÉTICOS DA PESQUISA

Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, pela Câmara Departamental de Clínica Médica e pelo Departamento de Ensino e Pesquisa do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os objetivos desta investigação foram apresentados aos coordenadores das UD e respectivas equipes. Os objetivos do estudo foram apresentados a todos os coordenadores e pacientes incluídos na investigação, que concordaram em participar da investigação assinando o Termo de Aceite Pós-Informado e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, respectivamente.

RESULTADOS 

Dos 500 pacientes incluídos, 45 (9%) foram excluídos durante o período de seguimento prospectivo de três meses, sendo a maioria (27; 60%) por falta de exames disponíveis para consulta, seguido de óbito (9; 20%), transplante (7; 15,5%) e alta do tratamento em diálise (2; 4,4%), como demonstrado na Figura 2. Esta perda não comprometeu o tamanho da amostra, com base em critérios estatísticos previamente descritos.

Em relação aos dados demográficos obtidos, como se observa na Tabela 2, houve predomínio de pacientes do sexo masculino (57,8%), com idade acima de 40 anos (49%), sendo 26,1% com idade superior a 60 anos. A média de idade foi de 50 ± 15 anos, variando de 16 a 89 anos. Houve predomínio de pacientes de cor não branca (53%), em relação à branca (47%). Em relação à escolaridade, 286 pacientes (62%) não completaram o nível fundamental. Observa-se uma prevalência maior de DRC nas classes mais pobres, devido à maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde, menor escolaridade e menor adesão ao tratamento das comorbidades associadas. A hipertensão arterial é a etiologia de DRC mais comumente encontrada em UD, seguida do diabetes melito e das glomerulopatias, o que também foi observado na nossa amostra: hipertensão 62%, diabetes 19% e glomerulopatias 13%.

Entre os fatores de risco de hepatite C investigados, observou-se a transfusão como a mais prevalente: ocorreu em 69,4% dos pacientes, embora 60,2% fossem realizadas após 1992, quando já eram disponíveis os ensaios sorológicos para o HCV nos hemocentros. Em relação à modalidade prévia de diálise, 80% dos pacientes relataram a HD como modalidade única, e 20% realizaram DP prévia. O tratamento em mais de uma UD foi descrito por 40,2% dos pacientes, e o tempo médio em diálise foi de 48,8 ± 41,2 meses, variando de 3 a 223 meses. Todos os pacientes foram submetidos a pelo menos um procedimento cirúrgico: a confecção da fístula arteriovenosa, para acesso no procedimento de HD. Os demais fatores de risco inerentes à infecção pelo HCV não foram considerados relevantes nesta população de pacientes.

Por ocasião da coleta da amostra (mês 0) para a realização dos exames virológicos, 92% dos pacientes apresentavam ALT entre os valores normais de referência e 7,9% apresentavam valores aumentados. Considerando-se o valor de referência máximo, estabelecido em 60% do limite superior normal, conforme proposto por Gouvea et al., em 2004, 71,2% dos pacientes apresentavam ALT normal e, em 29%, os valores eram aumentados. A sorologia anti-HCV resultou negativa em todos os pacientes durante o seguimento prospectivo de três meses, o que se revelou de alto VPN, ou seja, de 99,78%. Foi realizado o teste de biologia molecular, HCV RNA qualitativo, nas amostras dos 500 pacientes incluídos inicialmente. Destes, apenas um (0,2%) apresentou viremia positiva durante o seguimento do estudo, sendo este paciente do sexo masculino, branco, com 52 anos de idade, baixa escolaridade, hipertensão arterial como etiologia da DRC e sem outros fatores de risco. O paciente não havia recebido transfusão sanguínea, nem realizado diálise em outra clínica, e havia sido incluído no programa de HD há 48 meses, no momento da investigação. Os níveis de ALT encontravam-se dentro dos valores de referência e não ocorreu soroconversão durante o período de seguimento, apenas em 16 semanas com viremia positiva. Na Tabela 3, encontram-se resumidamente os resultados dos exames bioquímico, sorológico e de biologia molecular da amostra pesquisada.

DISCUSSÃO

Considerando-se que a hepatite C é uma doença de alta prevalência em pacientes com DRC,1 especialmente em HD, na qual a maior susceptibilidade à infecção pode ser atribuída às alterações da resposta imune,26,27 e ao ambiente nosocomial das UD,6 que o diagnóstico dessa infecção é dificultado pelo perfil de valores normais ou pouco elevados da ALT,9,10,16 pela possibilidade de resultados sorológicos falso-negativos,17,18 e pela baixa viremia, atribuída principalmente ao procedimento dialítico e às alterações da resposta imune,21,23,24 buscamos, no presente estudo, avaliar os métodos diagnósticos para detecção precoce da hepatite C e a periodicidade com que esses devem ser protocolados nas UD.

Aspectos demográficos, como a idade, o sexo, a cor, a etiologia da doença renal e a escolaridade não parecem se correlacionar com um risco maior para a transmissão do HCV, como já observado por alguns autores.8,15,22 Esses dados foram colhidos, nesta investigação, apenas para caracterização da amostra e estratificação dos riscos. Portanto, os parâmetros na amostra investigada correspondem ao padrão brasileiro de população em diálise, o que está de acordo com as Diretrizes Brasileiras de Doença Renal Crônica, publicadas no Jornal Brasileiro de Nefrologia,31 da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN).

A maioria dos participantes desse estudo era proveniente de uma única UD o que sugere uma menor vulnerabilidade dessa amostra à infecção pelo HCV, pois pacientes que frequentam mais de uma UD, têm um maior contato com os diversos genótipos do vírus.7,8,31,32 

Com relação à contaminação nosocomial do HCV, os fatores de risco têm sido revistos desde o início dos anos 1990, sendo que o tempo em programa de diálise e sua modalidade cresceram em importância por estarem diretamente relacionados. 2,7,8 Este fato reitera a relevância das medidas de precaução universais na prevenção dessa infecção. No presente estudo, o tempo médio em programa de diálise foi de 48,8 meses, e mesmo que considerável, ainda assim a casuística de viremia positiva dessa amostra foi baixa (0,2%), considerando-se os 500 pacientes incluídos. De acordo com as características dessa amostra, os fatores de risco apresentados não diferem do habitual em HD, a não ser pelo próprio convívio desses pacientes com outros potenciais transmissores do HCV no ambiente nosocomial, não detectados pelos marcadores usualmente utilizados para diagnóstico de hepatite C. Desta forma, existem indícios de que o contágio do HCV, nesta investigação, ocorreu na UD, pois os únicos fatores de risco possíveis para a aquisição do HCV encontrados no paciente com viremia positiva foram o tempo de tratamento em HD e a promiscuidade sexual. Entretanto, não foram identificadas outras doenças infecciosas (HBV e HIV) transmitidas por contato sexual neste paciente.

Não houve uma correlação positiva dos resultados da ALT com o HCV RNA, mesmo que os valores da ALT fossem reduzidos para 60% do valor máximo de referência.30 Contudo, nos pacientes com DRC em diálise, o limite superior do VR da ALT deve ser reduzido, levandose em conta que esse exame é um marcador disponível na rede pública para detecção da doença e também para indicar o exame sorológico antes do período estimado de seis meses, estabelecido pela última portaria que aborda esta questão.32 Este teste apresenta sensibilidade e especificidade próximas de 97 e 99%, respectivamente, em pacientes com competência imunológica; resultados falso-negativos podem ocorrer em pacientes com DRC, com redução da sensibilidade para 93% e da especificidade para 84%.10 Além disso, quando ocorre elevação nos valores, pode ser insuficiente para detecção da infecção pelo HCV na fase aguda, se observado com rigor o período de 12 semanas para a soroconversão, como foi o proposto na metodologia deste estudo.

O paciente com HCV RNA positivo encontrado neste estudo apresentava níveis normais de ALT, em relação aos VR desse exame. Contudo, alterando-se o ponto de corte para 60%,30 houve uma discreta elevação desta enzima nos meses -3 e +3. Ainda assim, parece haver pouca correlação entre os níveis de ALT e a presença de infecção pelo HCV, sendo necessários outros estudos para avaliar esta relação. Apesar da amostragem deste estudo ser significativa, ocorreu uma casuística de HCV RNA positivo (0,2%) e não foi possível correlacionar a prevalência de sorologia falso-negativa com os dados demográficos, os fatores de risco e os valores de ALT obtidos na amostra pesquisada.

A metodologia estabelecida nesta investigação, que constitui a verificação do anti-HCV trimestralmente em resultados históricos e prospectivos, teve por objetivo assegurar a inclusão de pacientes que não se encontravam no período da janela imunológica. Portanto, partindo dessa premissa, o resultado encontrado nesta investigação, 0,2% de prevalência de sorologia falsonegativa em uma amostra significativa de 500 pacientes, comprovou uma elevada sensibilidade do anti-HCV e alto VPN, corroborando sua segurança como exame de triagem e de seguimento nos pacientes em HD, e diferiu de outros estudos recentes, que demonstraram prevalências de sorologia falso-negativa variáveis entre 0,8% e 2,3%. Contudo, nesses estudos, a metodologia em coortes transversais não contemplou a análise de testes sorológicos históricos ou de seguimento prospectivo de até 12 semanas, considerado provável para que haja soroconversão em recém-infectados. Assim, é possível que a maior prevalência de soronegatividade do anti-HCV, relatada nesses estudos, possa ser atribuída à inclusão de pacientes no momento que antecedeu a conversão sorológica.11,17 

Neste estudo, não foi intenção estabelecer a validação tradicional entre o anti-HCV e o HCV RNA, padrão-ouro, para o diagnóstico da hepatite C, comparando-se um grupo positivo com outro negativo. Com respeito ao VPN do teste anti-HCV, partiu-se da premissa de que os indivíduos HCV RNA positivos seriam também anti-HCV positivos (concordância próxima a 100%), ou seja, ele apresenta um elevado VPP, o que é esperado com testes de elevada sensibilidade, em populações com alta prevalência da doença. Portanto, pode-se dizer que foi encontrado um elevado VPN para esta população (99,78%), pois foram utilizados testes sorológicos com alta sensibilidade e especificidade, como relatado em outros estudos.10,18,21,22 

O único paciente com sorologia falso-negativa permaneceu nesse estado durante o seguimento prospectivo de três meses, e a soroconversão para o HCV somente ocorreu 16 semanas após o resultado da viremia positiva, monitorado nesse estudo. Portanto, verificou-se que o teste anti-HCV apresentou elevada especificidade e VPN nesta amostra. Mesmo com um único paciente falso-negativo, deve-se reiterar a importância da adoção rigorosa de medidas de precaução universais, pois este paciente permaneceu potencialmente transmissor do HCV durante um período de 16 semanas, com base apenas nos exames de rotina protocolados nas UD.

CONCLUSÃO 

Os resultados encontrados nessa investigação podem ser atribuídos à metodologia utilizada, que buscou detectar pacientes na chamada janela imunológica. A ALT não contribuiu para o diagnóstico precoce da hepatite C aguda, o que confirma sua baixa sensibilidade e especificidade no diagnóstico da hepatite C aguda em pacientes com DRC em HD. A realização do HCV RNA, na rotina, não deverá anteceder uma análise crítica do intervalo da realização dos testes sorológicos, preconizados a cada seis meses, para detectar precocemente as soroconversões. Nenhuma associação pôde ser avaliada entre os fatores de risco e a soropositividade para o HCV, devido ao fato de apenas um paciente apresentar o exame HCV RNA positivo. Em razão do risco da sorologia falso-negativa, é essencial que as medidas de precaução universais sejam rigorosamente cumpridas nas UD, para evitar que o portador do HCV dissemine a infecção, antes mesmo de conhecer seu estado de potencial transmissor.

Conclui-se, neste estudo, que a redução do intervalo da realização do anti-HCV, a preconização de um valor menor do ponto de corte da ALT e a adoção das medidas de precaução universais para o controle da transmissão nosocomial do HCV poderão contribuir sobremaneira para a detecção precoce e o controle da infecção pelo HCV nos pacientes com DRC em HD. São necessários outros estudos, com inclusão de exames protocolares de detecção da hepatite C, avaliando o intervalo mais adequado dos exames sorológicos.

AGRADECIMENTOS

Ao Núcleo de Apoio em Pesquisa e Laboratório Central da Faculdade de Medicina da UFMG, às Unidades de Diálise de Belo Horizonte que participaram do projeto e ao Laboratório Paula Castro. À FAPEMIG/CNPq, pelo apoio financeiro.

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1. Ambulatório de Hepatites Virais/Instituto Alfa de Gastroenterologia/Hospital das Clínicas da UFMG.
2. NUPAD – Núcleo de Apoio em Pesquisa da Faculdade de Medicina da UFMG.
3. Faculdade de Medicina da UFMG.

Correspondência para:
Mary Lourdes Pinto de Oliveira
Rua Ignácio José Alvarenga Peixoto, 89 
Ouro Branco – Minas Gerais – CEP: 36420-000
E-mail: marypola@gmail.com

Declaramos a inexistência de conflitos de interesse

Data de submissão:17/6/2008
Data de aprovação: 19/3/2009

Diagnóstico da hepatite C em pacientes com doença renal crônica em hemodiálise: qual a melhor estratégia?

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