J. Bras. Nefrol. 2009;31(1 suppl. 1):49-58.

Manejo do Bicarbonato, Ácido Úrico e Lípides

Luiz Felipe Santos Gonçalves, Francisco Veronese

Bicarbonate, Uric Acid and Lipid Management

 

Resumo:

Este artigo revisa o manejo clínico dos distúrbios no metabolismo do bicarbonato, ácido úrico e lípides na Doença renal Crônica (DRC). Esta revisao foca principalmente os estágios pré-dialíticos da DRC e começa por uma descriçao sumarizada da fisiopatologia e das características clínicas que acontecem quando estes distúrbios ocorrem. A seguir, sao abordadas as possíveis consequências clínicas e repercussoes sobre a progressao da DRC. Finalmente, o manejo clínico e as recomendaçoes sao apresentados de forma esquemática, de acordo com as recomendaçoes nacionais e internacionais.

Descritores: hiperuricemia, dislipidemia, acidose metabólica, doença renal crônica.

Abstract:

In this paper the clinical management of metabolic acidosis, hyperuricemia and dyslipidemia are reviewed in patients with chronic kidney disease (CKD). The approach was to focus on the pre-dialysis stages of CKD. The authors present an initial synthesis of physiopathology and clinical and laboratory characteristics of these situations. Subsequently, the clinical consequences and influences of CKD progression are described. To conclude, the main national and international clinical guidelines are presented.

Descriptors: hyperuricemia, dyslipidemia, metabolic acidosis, chronic kidney disease

 

INTRODUÇAO

Neste artigo, serao abordados de forma sintética o manejo do bicarbonato, ácido úrico e lípides na Doença Renal Crônica (DRC). Tais distúrbios constituem importantes alvos terapêuticos da DRC por suas possíveis repercussoes clínicas. Para fins didáticos, cada tópico será abordado nos seguintes aspectos: fisiopatologia, características clínicas, consequências, manejo clínico e recomendaçoes. O manejo clínico e recomendaçoes restringem-se aos estágios pré-dialíticos da DRC.

BICARBONATO

Fisiopatologia

O equilíbrio ácido-básico é mantido normalmente pela excreçao renal da carga ácida diária. Esta costuma ser estimada em cerca de 1mEq/kg de peso/dia e resulta principalmente da geraçao de ácido derivado da ingesta alimentar. Esta carga metabólica pode variar de acordo com o conteúdo proteico da dieta, estado catabólico e massa muscular. O manejo renal de ácidos é realizado pela excreçao urinária de ions hidrogênio sob forma de acidez titulável ou amônia e pela reabsorçao de bicarbonato pelo túbulo proximal 1. Nos estágios iniciais da DRC, com a reduçao de massa renal e de nefrons funcionantes, a excreçao da carga ácida é mantida por aumento da excreçao de amônia por néfron. Mas, a partir de reduçoes na filtraçao glomerular (FG) abaixo de 40-50mL/min, a excreçao de amônia nao consegue mais ser aumentada, resultando em acúmulo de ácidos.

Características Clínicas

As principais características clínicas da acidose metabólica da DRC sao 2:

– reduçao do bicarbonato plasmático com FG < 30mL/min;

– acidose geralmente leve a moderada com bicarbonato entre 12 e 22mEq/L;

– o ânion gap é usualmente elevado; a presença de ânion gap normal pode estar relacionada à disfunçao tubular e estes pacientes devem ser investigados quanto à possibilidade de acidose tubular renal;

– a acidose costuma ser constante para um dado nível de funçao renal, pacientes com acidose metabólica mais severa ou desproporcional ao grau de reduçao de filtraçao glomerular devem ser investigados quanto à etiologia da DRC (doenças predominantemente túbulo-intersticiais) ou presença de hipoaldosteronismo hiporeninêmico;

– em pacientes com doença comprometendo primariamente o ducto coletor (doença falciforme, uropatia obstrutiva, amiloidose), ocorre reduçao na capacidade de acidificaçao distal, manifestado por pH urinário acima de 6.

Consequências

Diversos estudos clínicos e experimentais têm descrito efeitos deletérios da acidose metabólica em vários sistemas corporais. Tais efeitos embasam a necessidade de tratamento desta alteraçao e consistem em:

– contribuiçao para o desenvolvimento ou exacerbaçao de doença óssea e reduçao de crescimento em crianças por estimulaçao da reabsorçao óssea, inibiçao da formaçao óssea, inibiçao da produçao de vitamina D e alteraçao da resposta das paratireoides;

– reduçao de massa muscular por aumento de catabolismo proteico;

– possível reduçao na síntese de albumina;

– possíveis efeitos sobre a progressao da insuficiência renal por geraçao de mediadores inflamatórios secundários à produçao aumentada de amônia, embora nao existam estudos clínicos suficientes para confirmar esta hipótese;

– efeitos ainda incertos, como exacerbaçao de doença cardíaca, aumento do estado inflamatório, hiporresponsividade à insulina e alteraçao no metabolismo tireoideo.

Manejo Clínico

Em face dos reconhecidos potenciais efeitos deletérios da acidose metabólica, conforme exposto na seçao anterior, e o resultado de vários estudos clínicos demonstrando os benefícios com a correçao, mesmo que parcial destes distúrbios, é recomendável a manutençao dos níveis plasmáticos de bicarbonato iguais ou acima de 22mEq/L em pacientes com DRC. Como nao existem estudos adequadamente conduzidos examinando o impacto de diferentes níveis de correçao do bicarbonato plasmático, há alguma controvérsia quanto ao alvo terapêutico ideal. Outro aspecto importante que deve ser considerado em relaçao ao tratamento da acidose metabólica é que a administraçao de bicarbonato de sódio pode ter efeitos adversos sérios, como:

– promoçao de calcificaçao metastática por reduçao na solubilidade do fosfato de cálcio;

– sobrecarga de volume;

– insuficiência cardíaca congestiva;

– exacerbaçao de HAS preexistente.

Por vezes, a administraçao de bicarbonato de sódio nao é bem tolerada pela formaçao de CO2, sendo entao preferível a prescriçao de soluçao de Shohl (citrato de sódio). A terapia com bicarbonato de sódio deve ser iniciada na dose diária de 0,5 a 1mEq/kg de peso/dia por via oral.

Recomendaçoes

As recomendaçoes preconizadas nas principais diretrizes clínicas brasileiras e internacionais estao sumarizadas na tabela 1 abaixo.

ACIDO URICO

Fisiopatologia

O ácido úrico é o produto final do metabolismo das purinas. Estas originam-se principalmente de forma endógena do catabolismo de ácidos nucleicos e síntese de novo e, em menor magnitude, de forma exógena, decorrente da ingestao na dieta. Aproduçao diária do ácido úrico é cerca de 700mg/dia, sendo eliminados 30% através de uricólise intestinal e os restantes 70% pelos rins, através de filtraçao glomerular e processos de reabsorçao e secreçao tubulares no túbulo proximal, com uma excreçao fracionada da carga filtrada de menos de 10% 6.

A maioria dos pacientes com gota e hiperuricemia apresenta uma reduçao da excreçao fracionada para menos do que 6%. No contexto da DRC, a excreçao fracionada aumenta, mas nao é suficiente para compensar a reduçao na filtraçao glomerular e, em consequência, há uma elevaçao nos níveis séricos de ácido úrico. No passado, atribuía-se os efeitos destrutivos e próinflamatórios do ácido úrico à deposiçao tecidual de cristais de urato insolúveis. Mais recentemente, estudos experimentais e epidemiológicos sugerem a possibilidade de que a elevaçao dos níveis de ácido úrico solúvel nos líquidos corporais também estaria associada à disfunçao endotelial, alteraçoes renais por lesao intersticial com ativaçao do sistema renina-angiotensina-aldosterona e inibiçao da produçao de óxido nítrico intrarrenal (7).

Características Clínicas

As doenças relacionadas à deposiçao de cristais de ácido úrico sao a gota, urolitíase e nefropatia aguda por ácido úrico (geralmente relacionada a síndromes de lise tumoral). Apresença de uma nefropatia crônica relacionada à deposiçao de ácido úrico é questionável e, na maioria dos casos, está associada a outras nefropatias, como a intoxicaçao por chumbo.

A hiperuricemia que ocorre na DRC decorre essencialmente da reduçao na FG e costuma ser assintomática. Mesmo a definiçao de hiperuricemia assintomática na populaçao geral é difícil de estabelecer devido à distribuiçao nao normal dos níveis de ácido úrico em diversas populaçoes. Como os limites de solubilidade do ácido úrico encontram-se próximos a 7mg/dL, este foi o nível empregado para definir a hiperuricemia. É importante salientar que vários fatores podem contribuir para alteraçoes nos níveis de ácido úrico, conforme apresentado na tabela 2.

Em pacientes com DRC8, considera-se a presença de hiperuricemia quando há uma elevaçao nos níveis de ácido úrico inadequada em relaçao ao nível de FG, como, por exemplo:

> 9mg/dLse creatinina < 1,5mg/dL,

>10mg/dLse creatinina entre 1,5 e 2mg/dL,

>12mg/dLse creatinina > 2mg/dL.

Consequências

A hiperuricemia está claramente associada à hipertensao, doença cardiovascular e DRC, sendo também demonstrado por vários estudos epidemiológicos como um fator de risco cardiovascular e um forte preditor de mortalidade em pacientes hipertensos e com doença cardiovascular. A grande questao que permanece sem resposta definitiva é se a hiperuricemia pode ter um papel patogênico na progressao da DRC ou simplesmente refletir a reduçao na excreçao renal do ácido úrico.

Os mecanismos que potencialmente mediariam este papel têm sido bastante estudados e incluem disfunçao endotelial, proliferaçao vascular, aumento na síntese de interleucina-6, resistência insulínica e produçao de óxido nítrico endotelial. Entretanto, os estudos populacionais têm mostrado resultados discordantes em relaçao a esta associaçao de hiperuricemia com progressao de doença renal9,10.

Os estudos transversais mostram uma forte associaçao entre elevaçao do ácido úrico e a prevalência de DRC, mas, naqueles longitudinais, a associaçao destes níveis com reduçao da funçao renal é pouco convincente. A justaposiçao destes resultados pode sugerir que a FG tem efeitos mais fortes sobre os níveis de ácido úrico do que o contrário. Apesar disso, têm crescido as evidências, embora ainda fracas, de que a hiperuricemia pode ter um papel patogênico na progressao das nefropatias e nao ser um mero marcador para outros fatores de risco associados. Johnson chega a levantar a hipótese de que as mutaçoes genéticas que levaram os primatas a reduzir os níveis de ácido ascórbico e a aumentar os de ácido úrico ocorreram para proporcionar vantagens de sobrevivência, auxiliando a manter a pressao sanguínea em períodos de alteraçoes dietéticas ou estresse ambiental, e que tais vantagens no mundo atual de inatividade física e abundante dieta ocidental se transformariam em desvantagens, relacionando-se ao aumento no risco de hipertensao e de doença cardiovascular11.

Manejo Clínico

A decisao a respeito da necessidade de tratamento de hiperuricemia em pacientes com DRC deve levar em consideraçao os potenciais benefícios em relaçao aos riscos de um tratamento que geralmente é continuado e por toda a vida. Estes riscos podem incluir as reaçoes tóxicas ao alopurinol como reaçoes severas de hipersensibilidade. Antes disso, a medida inicial deve ser a verificaçao de potenciais causas secundárias e/ou transitórias de hiperuricemia conforme exposto na tabela 2.

Naqueles indivíduos em que é detectado um excesso de ingestao de purinas na dieta, deve ser recomendada a reduçao na ingestao de alimentos ricos em purinas. Considerar também o tratamento de comorbidades como: obesidade, hipertensao e uso abusivo de álcool. Tratamento com agentes antihiperuricêmicos, como o alopurinol (que reduz a produçao de uratos por inibiçao da xantina oxidase), estariam indicados em pacientes com gota ou urolitíase secundária a hiperuricemia e/ou hiperuricosúria. O objetivo do tratamento é manter os níveis de ácido úrico um pouco abaixo dos limites da normalidade de acordo com aqueles valores esperados para o nível de funçao renal.

A meia-vida do alopurinol e de seu metabólito ativo oxipurinol está aumentada em pacientes com reduçao na FG e, por isso, a dose inicial de alopurinol deve ser reduzida nestes pacientes (tabela 3). O uso de agentes uricosúricos é limitado, pois, em fases mais avançadas da DRC, seu efeito seria reduzido em consequência da reduçao na FG. Em pacientes com DRC em estágios 2 ou 3, poderia ser considerado o emprego de losartan. Esta droga tem a vantagem de combinar efeitos antihipertensivos, antialbuminúricos e uricosúricos.

Recomendaçoes

Existem evidências teóricas que poderiam suportar o papel do ácido úrico tanto como um fator iniciador como um fator envolvido na progressao da DRC. Os modelos experimentais em ratos sugerem que o tratamento com alopurinol pode prevenir as lesoes estruturais e funcionais mediadas pela hiperuricemia 12. Entretanto, nao se encontram evidências suficientes que possam embasar a recomendaçao de tratamento de hiperuricemia assintomática em pacientes com DRC. Um dos estudos que relata desfechos favoráveis neste contexto, em termos de progressao da doença renal, tem um número reduzido de pacientes, é de curta duraçao e em populaçao chinesa 13.

Assim, as principais diretrizes clínicas internacionais como KDOQI, UK Renal Association, Canadian Society of Nephrology, European Best Practices Guidelines e CARI nao recomendam o tratamento de hiperuricemia assintomática em pacientes com DRC. Adiretriz da SBN recomenda tratamento em pacientes que apresentarem manifestaçoes clínicas 14

LIPIDES

Fisiopatologia

A DRC e a queda da FG resultam em uma profunda desregulaçao do metabolismo das lipoproteínas. A dislipidemia desenvolve-se nas fases iniciais da DRC (FG <60mL/min), e alteraçoes nas apolipoproteínas usualmente precedem as mudanças observadas nos níveis plasmáticos dos lipídeos. Influenciam esses níveis a nefropatia de base, o grau de proteinúria, inflamaçao crônica e estresse oxidativo, entre outros fatores15,16.

Predominam na DRC a hipertrigliceridemia e níveis reduzidos de HDL-colesterol, em especial HDL . 2 Os níveis de LDL-colesterol podem estar normais, mas o seu conteúdo de triglicérides (TG) está elevado. Também aumentam o VLDL e o IDL-colesterol, e, nessas fraçoes, eleva-se o conteúdo das apoliproteínas (Apo) C-III e Apo- E. Na perda avançada de funçao renal, a lipoproteína (a) também se eleva no plasma 16-18.

Três fatores contribuem para a reduçao do catabolismo e depuraçao de TG e Apo-B: a) inibiçao da atividade da lipase lipoproteica e da lipase hepática; b) alteraçoes na composiçao das lipoproteínas, impedindo sua ligaçao aos receptores; c) diminuiçao da captaçao de lipoproteínas da circulaçao. A reduçao da produçao de HDL-C é consequência da diminuiçao dos componentes ApoA-I e ApoA-II de sua partícula, cuja expressao genética está reduzida no fígado 15-17.

O acúmulo de VLDL-C que contém apo-B é importante para o desenvolvimento e manutençao da dislipidemia na DRC. Ocorre acúmulo dos remanescentes das lipoproteínas, produtos da degradaçao dos quilomicrons e do VLDL-C, que sao ricos em colesterol e altamente aterogênicos 15-18.

Características clínicas

De acordo com os critérios de dislipidemia estabelecidos pelo Third Report of the Cholesterol Education Program (NCEP-III) 19, a prevalência de dislipidemia nos estágios 1 a 4 da DRC distribui-se conforme a Tabela 4:

A medida que a insuficiência renal progride, diminuem ou normalizam os níveis de LDL-C e predominam a reduçao do HDL-C abaixo de 40mg/dL e TG acima de 200mg/dL. Outra alteraçao encontrada em fases avançadas da DRC é o aumento da lipoproteína(a), que, como a partícula de LDL-C, é um fator de risco independente para aterosclerose e doença cardiovascular 15,16.

Fatores potencialmente reversíveis de hipertrigliceridemia podem estar presentes e devem ser pesquisados, como obesidade, inatividade física, consumo excessivo de álcool, dieta rica em carboidratos, síndrome nefrótica e medicaçoes como betabloqueadores, estrógenos, corticosteroides, inibidores da calcineurina, sirolimus 16,22.

A dislipidemia na DRC pode estar associada a outras condiçoes prevalentes na DRC como hipertensao arterial, diabete melito, síndrome metabólica, resistência à insulina e obesidade. O LDL-C pode ser normal ou baixo. Caracteristicamente aumentam os remanescentes das lipoproteínas circulantes, medidos pelo colesterol nao HDL, isto é, o colesterol total menos o HDL-C, que normalmente deve ser inferior a 130mg/dL no plasma. É possível que o colesterol nao HDLseja um melhor preditor de mortalidade coronária do que o LDL-C e um marcador substituto para a apo-B aterogênica 16,20,23.

Consequências clínicas

1) Mortalidade: Estudos clínicos na populaçao geral têm demonstrado que a mortalidade por doença arterial coronariana (DAC) reduz proporcionalmente com a diminuiçao dos níveis de LDL-C. Em pacientes com DRC, a relaçao entre mortalidade por DAC e dislipidemia é mais complexa. No estágio 5, o conceito de epidemiologia reversa relaciona colesterol total baixo a maior mortalidade, refletindo os efeitos da desnutriçao e inflamaçao crônica de pacientes em diálise sobre a mortalidade cardiovascular. Existem evidências suficientes para atribuir a indivíduos com DRC um risco estimado de evento coronariano acima de 20% em dez anos, isto é, um grupo de alto risco de morbimortalidade por doença cardiovascular (DCV) 14,19,22,24,. Os efeitos tóxicos diretos dos lipídeos e os mecanismos inflamatórios comuns à DRC e à DCV interagem ocasionando dano endotelial microvascular e aterogênese.

2) Dano renal e progressao da DRC: Diversos mecanismos de lesao renal têm sido sugeridos. Biópsias de pacientes com DRC mostram acúmulo de lipoproteínas, partículas de LDLoxidado e células espumosas em células mesangiais e glomerulares e na matriz mesangial, ativando citocinas pró-inflamatórias e fatores de crescimento pró-fibróticos. Ocorre proliferaçao de células mesangiais e expansao de matriz, disfunçao endotelial, ativaçao do sistema renina-angiotensina-aldosterona e de fatores pró-trombóticos, com aumento de tromboxane. A resposta inflamatória e fibrogênica resultam em glomerulosclerose, dano crônico túbulo-intersticial e reduçao progressiva da funçao renal 16,25.

3) Aumento de proteinúria: existem evidências de que o LDL oxidado induz apoptose de proteínas do podócito como a nefrina, lesando o diafragma em fenda e permitindo a difusao de proteínas como a albumina 16,25.

Manejo clínico

1) Dosagem do perfil lipídico: a medida dos lipídeos séricos deve ser realizada em todos os pacientes com DRC, em jejum de 12 horas, e inclui CT, LDL-C, HDL-C e TG. O LDL-C deve ser calculado pela fórmula de Friedewald: (CT-HDL-C) – (TG/5), em mg/dL. A frequência dessa medida está estabelecida para DRC estágio 5 nas diretrizes do K-DOQI publicadas em 2003 22, mas, nos demais estágios, também deve ser mais frequente do que na populaçao geral. Com o paciente estável, e na ausência de doenças agudas que alterem o colesterol (eventos cardiovasculares, sepse, cirurgias), devem-se medir os lipídeos na apresentaçao inicial, três meses após para confirmar os valores basais e se estiverem normais, anualmente após. Se houver intervençoes como dieta, drogas hipolipemiantes ou outras condiçoes que alterem os lipídeos, repetir a medida a cada 2-3 meses.

Devem ser avaliadas causas secundárias de dislipidemia, como hipotireoidismo, diabetes, síndrome nefrótica, hepatopatias, uso de álcool e drogas (betabloqueadores, diuréticos, estrógenos, corticosteroides) 22.

2) Intervençoes: mudanças de hábitos de vida devem ser implementadas como medida isolada por um período inicial de três meses se o LDL-C for <130mg/dL, TG <500mg/dL e colesterol nao HDL < 130mg/dL, mas devem ser mantidas durante todo o tratamento 19,22.

a) Dieta:

1)Reduçao da gordura saturada a <7% das calorias totais, poli-insaturada até 10%, monossaturada até 20%; gordura total até 25%-35%; colesterol < 200mg/d; carboidratos 50%-60% das calorias totais; fibras 20-30g/d.

2)Melhora do controle glicêmico.

3)Manter índice de massa corporal entre 25-28kg/m2.

b) Atividade física: manter atividade física moderada 3-4 vezes/semana, mínimo 20-30 minutos (caminhada, nataçao, exercícios de resistência).

c) Hábitos: consumo moderado de álcool (uma dose/dia), se aprovado pelo médico.

d) Abandono do tabagismo

e) Drogas hipolipemiantes: a reduçao do LDL-C <100mg/dL é a principal meta do tratamento, e as estatinas sao as drogas de primeira escolha 19,22. Devem ser observadas as propriedades farmacocinéticas para ajuste de dose (vide Recomendaçoes) e os potenciais paraefeitos (ver abaixo). Se houver falha terapêutica, uma resina (ex., colestiramina) ou ezetimibe pode ser associada 15,19,22. Na presença de triglicerídeos >500mg/dL, em que há risco de pancreatite, o genfibrozil é a droga de escolha para manter níveis de TG <200mg/dL, sendo o ácido nicotínico uma alternativa 15,22. O fenofibrato teria vantagens teóricas pela ausência de interaçao com as estatinas e menor risco de rabdomiólise, mas pode aumentar a creatinina sérica e a homocisteína 15. O tratamento da reduçao isolada do HDL-C (<40mg/dL) nao é recomendado, além da mudança dos hábitos de vida 22. A meta do HDL-C é > 40mg/dL. Como meta terapêutica secundária, preconiza-se a manutençao do colesterol nao HDL <130mg/dL (principalmente se associado a TG > 200mg/dL) com o uso de uma estatina, sendo fibratos e ácido nicotínico drogas alternativas 22 (vide Recomendaçoes).

Para-efeitos: o uso de estatina, especialmente se associado a fibrato ou drogas que aumentem o nível sérico das estatinas (ex., inibidores da calcineurina, macrolídeos, antifúngicos), pode desencadear miopatia, que deve ser monitorizada com a dosagem da creatinofosfoquinase (CPK) basal e se houver dor muscular. Se ocorrer rabdomiólise (CPK >dez vezes do valor basal), a estatina deve ser suspensa. Hepatotoxicidade ocorre em 0,5% a 2% dos casos, com aumento de transaminases, e também deve ser monitorizada. As estatinas estao contraindicadas na hepatopatia crônica 15,19,20,22.

3) Efeito das drogas hipolipemiantes sobre a doença cardiovascular na DRC:

Nao existem estudos controlados randomizados com grande amostra de pacientes que comprovem que o tratamento da dislipidemia com drogas hipolipemiantes na DRC reduz a incidência de eventos cardiovasculares. Para pacientes nos estágios 1 a 4, os dados disponíveis sao de análise de subgrupos de ensaios clínicos randomizados de prevençao secundária, conforme tabela 5. Entretanto, pode-se inferir desses e de outros estudos da populaçao geral e de pacientes com DRC estágio 5 que existe benefício em tratar pacientes com DRC estágios 1-4 por terem alto risco de eventos cardiovasculares e talvez também por uma provável açao pleiotrópica das estatinas, independentemente da reduçao dos níveis de lipídeos. Dois grandes estudos em andamento, o AURORA abordando DRC estágio 5 (rosuvastatina vs. placebo) 26 e o SHARP versando sobre DRC estágios 2-5 (sinvastatina vs. sinvastatina+ezetimibe), 27 devem fornecer evidências mais sólidas.

4) Efeito das drogas hipolipemiantes sobre a progressao da DRC e proteinúria:

Resultados de estudos randomizados, mas com limitaçoes metodológicas – pequeno número de pacientes e curta duraçao -, sugerem que as drogas hipolipemiantes podem retardar o declínio da funçao renal e reduzir a progressao da DRC moderada a severa, especialmente nos pacientes com proteinúria. Existe também efeito de reduçao dos níveis de proteinúria, independentemente da funçao renal. Porém, esses resultados sao controversos e devem ser considerados preliminares, assim como os dos estudos que mostram reduçao da inflamaçao, do estresse oxidativo e da disfunçao endotelial com o uso de estatinas em pacientes com DRC 14,16,25.

Recomendaçoes

As recomendaçoes para o manejo clínico da dislipidemia na DRC encontram-se sumarizadas no quadro 1.14,15,19,22

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Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Disciplína de Nefrologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, UFRGS

Manejo do Bicarbonato, Ácido Úrico e Lípides

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