J. Bras. Nefrol. 2000;22(3 suppl. 2):10-6.

Perfil dos nefrologistas no Brasil*

Maria Helena Machado, Luiz Felipe Pinto, Alan Castro, João Cen

INTRODUÇAO

A partir da pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil, realizada pela Fundaçao Oswaldo Cruz**, em 1995/96, foi possível conhecer a situaçao dos médicos que atuam no sistema de saúde brasileiro, seja na esfera privada ou pública. Pela utilizaçao de um questionário distribuído entre os médicos selecionados em uma amostra nacional, a pesquisa buscou caracterizar o perfil desses profissionais, abordando os seguintes itens: (a) aspectos socioeconômicos; (b) formaçao profissional; (c) acesso à informaçao técnico-científica; (d) o mundo do trabalho; (e) a mulher no exercício da profissao; (f) participaçao sociopolítica; (g) Mercosul.

Buscando complementar o estudo para o todo o país e conhecer a realidade dos médicos nefrologistas, a Sociedade Brasileira de Nefrologia realizou uma enquete entre seus associados, aplicando um questionário que continha questoes que detalhavam mais o perfil dos nefrologistas.*** Dessa forma, foi possível associar esses dois bancos de dados e traçar o perfil desses profissionais.

Antes de se analisar os dados referentes aos nefrologistas, serao abordados, em linhas gerais, alguns traços do Perfil dos Médicos no Brasil.

A profissao médica no país é eminentemente jovem, ou seja, 65,8% do contingente médico têm menos de 45 anos de idade, somando-se apenas 8,6% com mais de 60 anos. A maioria buscou fazer sua formaçao profissional em instituiçoes públicas (66,4%). Além disso, 74,1% dos médicos cursaram um programa de residência médica, e mais da metade possui título de especialista. Na esfera do mundo do trabalho, é elevado o número de profissionais que atuam em três ou quatro atividades, distribuídos da seguinte forma: 69,7% têm emprego público; 59,3% têm atividade no setor privado; e 74,7% fazem consultório. Além disso, há um elevado percentual (48,9%) de médicos que desempenham a funçao de plantonistas. No entanto, mesmo com múltiplas atividades, em geral os médicos no Brasil continuam recebendo rendimentos mensais baixos, nao ultrapassando US$ 1.500.

A pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil1 revela ainda alguns dados importantes sobre a distribuiçao regional desses profissionais no país, apontando para algumas dicotomias.

  • Primeiro: o Brasil é constituído em sua maioria por clínicos gerais, pediatras, cirurgioes gerais, ginecoobstetras, anestesistas e ortopedistas.
  • Segundo: enquanto a pediatria e a gineco-obstetrícia representam, respectivamente, 13,4% e 11,8%, a neurologia, a hematologia, a cancerologia e a própria nefrologia nao passam de 1% (cada uma delas) do contingente médico existente hoje no Brasil.
  • Terceiro: a regiao Sudeste concentra a maioria absoluta das especialidades “finas” existentes no sistema de saúde brasileiro, ou seja, os cirurgioes plásticos, os cardiovasculares, os mastologistas, os neurocirurgioes, os radioterapeutas, entre outros (Tabela 1).

 

Os nefrologistas

Perfil sociodemográfico

Constituindo-se em 1.699 profissionais em todo o território nacional1 e necessitando, quase sempre, de equipamentos sofisticados e de alta tecnologia, a nefrologia está incluída entre as especialidades “finas”, concentrando suas atividades em regioes mais desenvolvidas do país (Tabela 2).

Ao analisar os dados do Nefrodata (1998) referentes à distribuiçao por regioes brasileiras, esse fato torna-se ainda mais evidente: cerca de 80% de todos os nefrologistas, no Brasil, estao nas regioes Sudeste e Sul. Mais especificamente, 43,0% desses profissionais estao localizados em dois estados: Rio de Janeiro (17,3%) e Sao Paulo (25,7%). O Sul dispoe de 22%, distribuídos pelos estados do Rio Grande do Sul (11%), Santa Catarina (6,2%) e Paraná (5,2%). Já a Regiao Nordeste apresenta um reduzido número desses especialistas, com destaque para Pernambuco (4,1%) e Bahia (3,2%).

Atualmente o que se pode verificar no Brasil é uma alta concentraçao de profissionais atuando nas capitais. “O indicador médicos/1.000 habitantes (…) sugere a existência de uma heterogeneidade na distribuiçao de médicos em todos os Estados do Brasil, com destaque para as regioes Sudeste e Sul. Nas capitais dessas regioes, os números atingem níveis de países desenvolvidos, ao passo que em vários municípios brasileiros (…), as estimativas observadas retratam níveis de países subdesenvolvidos.2 A concentraçao dos médicos nos grandes centros urbanos brasileiros acompanha a distribuiçao da renda nacional, bem como a localizaçao de grande parte da capacidade instalada de estabelecimentos de saúde e de educaçao: 78% dos profissionais estao exercendo suas atividades em apenas sete (Sao Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Bahia e Pernambuco) das vinte e sete unidades da federaçao.****,3

Da mesma forma, segundo dados do Nefrodata (1998), observa-se que essa especialidade é praticada por 70% de profissionais do sexo masculino, o que a caracteriza como uma atividade basicamente masculina.

No que se refere à idade dos médicos, evidenciase a característica “jovem” verificada no perfil nacional, salientando o aspecto geracional dos nefrologistas, ou seja, mais de 70% têm menos de 45 anos, sendo poucos os especialistas na faixa etária superior a 50 anos (Tabela 3). Poder-se-ia dizer que os nefrologistas no Brasil sao frutos dessas últimas geraçoes.*****

Os dados do Nefrodata (1998) enriquecem a análise do perfil sociodemográfico, uma vez que apontam para o fato de que 77,8% sao casados e apenas 15,2% sao solteiros. Têm em média dois filhos e seus pais nao possuem curso superior. Em seus domicílios, em média, duas pessoas têm trabalho remunerado.

Aspectos da formaçao profissional

Quanto à formaçao dos nefrologistas, pode-se dizer que o seu desempenho difere bastante do perfil nacional, especialmente no que se refere à formaçao de pós-graduaçao latu e strictu-sensu (Tabela 5), em que, segundo dados do Nefrodata (1998), mais de 70% dos nefrologistas fizeram residência médica, quase 40% têm curso de especializaçao e em torno de 20% têm mestrado e/ou doutorado.

Pinto4,5 (1999) ressalta que “as modalidades de pósgraduaçao strictu-sensu têm crescido entre os mais jovens, ou seja, 76% dos médicos (com doutorado e/ou mestrado) têm até 49 anos de idade.” Acredita-se que essa situaçao se configurará em uma tendência do mercado de trabalho, a qual demandará, cada vez mais, elevada qualificaçao para atuar em uma medicina tecnológica e altamente especializada.

Confirmando a política nacional adotada de centralizaçao de recursos físicos e humanos nos grandes centros, observa-se uma concentraçao nas áreas urbanas de diversos programas de residência, com ênfase para a regiao Sudeste e Sul. Os Estados de Sao Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais destacam-se nao somente pela quantidade mais pela grande diversidade de especialidades existentes, algumas das quais só aparecem nesses locais.

Entretanto, no exemplo dos nefrologistas, a proporçao de médicos com residência é homogênea em todas as regioes brasileiras, o que confere a essa especialidade uma característica de controle sobre a atividade, ou seja, aqueles que atuam na área cursaram no mínimo um programa de residência médica em nefrologia (Tabela 6).

Campos et al, discorrendo sobre a questao do planejamento educacional em saúde no contexto do Mercosul, apontam a necessidade de que esse considere um sistema de controle da formaçao e da distribuiçao de profissionais. Dessa forma, os diversos modos de acesso às instituiçoes de ensino superior no Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai possuem uma grande relevância, uma vez que: “as restriçoes já em vigência através de numerus clausus, vestibulares e cobrança de matrículas significativas, já estao produzindo migraçoes de estudantes para aqueles centros de menores barreiras, o que sem dúvida há de se acentuar criticamente a partir da perspectiva de livre prática profissional entre os países.”6

Outro dado interessante refere-se ao acesso desses profissionais às revistas científicas da área, ou seja, a maioria tem acesso mensalmente a três revistas especializadas em nefrologia. Além disso, sao usuários da Internet (82,3%), estando inscritos no GER 47,6%.

Aspectos do mercado de trabalho

No mundo do trabalho, esses especialistas apresentam traços semelhantes aos encontrados no contingente de médicos em geral, ou seja, atuam principalmente em três atividades: hospital privado, clínica de hemodiálise e consultório (Tabela 7). Por exemplo, a atividade em consultório é uma prática bastante difundida entre eles, especialmente se associada a outras atividades. De modo geral, os consultórios sao mantidos por convênios, que, no caso dos nefrologistas, têm uma participaçao maior que 80%. Analisam Machado et al2 : “algumas das especialidades mais freqüentemente associadas à prática no consultório com convênios sao citopatologia, hematologia, fisiatria, cancerologia, radiologia, tisiologia, alergia e imunoterapia. Por outro lado, as que estao menos associadas à prática mediante convênios sao: genética clínica, hemoterapia, broncoesofagologia, homeopatia, angiologia, eletroloencefalografia, psiquiatria, endoscopia digestiva, geriatria e gerontologia, infectologia, medicina do trabalho e nutrologia”.

Tomando os dados da pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil, verifica-se que as atividades no setor público e no setor privado reforçam a importância desses dois setores de prestaçao de serviços de saúde para esse segmento médico especializado. No caso específico, ressalta-se a importância da assistência médica prestada pela rede pública, particularmente em se tratando de doentes crônicos renais. De especial atençao também é essa atividade desenvolvida no setor privado que se mostra de forma distinta do setor público, ou seja, enquanto nos interiores a iniciativa privada exerce hegemonia, nas capitais está menos presente, registrando “apenas” 62,9% de profissionais atuando neste setor (Tabela 8).

Os dados referentes à atividade em plantao merecem destaque na análise pelo elevado percentual de médicos do interior que adotam essa modalidade de atendimento: enquanto nas capitais, 58,6% desses fazem plantao, nos interiores esse índice atinge mais de 80% (Tabela 9).

De grande importância entre os nefrologistas, a clínica de hemodiálise representa um dos vínculos mais importantes da atividade desses profissionais. A relaçao com o centro de diálise varia desde empregado (45%) até sócio (34,1%) e mesmo proprietário (7,7%).

Diferentemente da média nacional, os nefrologistas tendem a ter rendimentos superiores aos verificados na maioria dos médicos do Brasil. A renda média estimada foi de US$ 2.607 para aqueles que atuam nas capitais e US$ 3.162 para os interiores (Tabela 10). A nefrologia está entre aquelas especialidades que conferem rendas superiores a nacional aos médicos, nao só pela “escassez” de especialistas no mercado, como, e principalmente, pelos altos custos que caracterizam os atos médicos nefrológicos. Os altos custos operacionais, a tecnologia de ponta que reveste o ato médico e a correlaçao “oferta/demanda” propiciam, a esse segmento da medicina, diferenciaçao de mercado de trabalho.

Porém, quando desagrega-se essa informaçao segundo o gênero, constata-se, segundo dados do Nefrodata (1998), que os homens ganham em média R$ 7.700 e as mulheres têm um rendimento médio de R$ 4.500. Também em relaçao à faixa etária, há grandes diferenças: enquanto os nefrologistas com menos de 40 anos ganham em média R$ 4.900, os que possuem mais de 40 anos recebem em média R$ 8.000.

Para guisa de conclusao: alguns aspectos associativos

Como se viu neste estudo, os nefrologistas também enfrentam problemas no pleno desenvolvimento de seu trabalho, nao só no que diz respeito às inúmeras atividades a que têm de se submeter para aferir rendimento mensais satisfatórios, como também nas próprias condiçoes de trabalho em que desenvolvem suas atividades diárias, seja em estabelecimentos públicos ou privados, além do próprio desgaste físico a que estao submetidos, dada a natureza do processo de trabalho da especialidade.7

Apesar de tudo isso, os dados do Nefrodata (1998) indicam um elevado grau de satisfaçao com a área: cerca de 65% dos profissionais manifestaram-se ‘satisfeitos’ ou ‘muito satisfeitos’.

Também se verifica um engajamento com as questoes políticas concernentes à corporaçao, ou seja, 47% sao sindicalizados, e a maioria está filiada à Sociedade Brasileira de Nefrologia, manifestando uma satisfaçao quanto a seu desempenho político junto a seus filiados. Contudo, reivindicam que a SBN associe as suas atividades políticas e de promoçao da especialidade às questoes técnico-científicas, no que se refere aos aspectos de formaçao, educaçao continuada e atualizaçao profissionais.

Enfim, acredita-se que este texto responda, em parte, as necessidades e os interesses da Sociedade Brasileira de Nefrologia em conhecer o “perfil” de seus especialistas e que se possa, num futuro próximo, elaborar um estudo que vise efetivamente conhecer, de forma mais abrangente, o mundo do trabalho e da vida desses médicos.

REFERENCIAS

1. Machado MH, Avila C, Oliveira ES, Serta F, Lozana JA, PintoLF, et al. Perfil dos médicos no Brasil. Relatório final (Médicos em Números). Vol. I. Brasil e Grandes Regioes. Rio de Janeiro: Fiocruz/CFM/MS-PNUD; 1996.

2. Machado MH, Rego S, Oliveira ES, Lozana JA, Pereira S, Pinto LF, et al. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1997.

3. Oliveira ES, Pinto LF. Os serviços de saúde no Brasil: a capacidade instalada no período 80/92. In: Anais do X Encontro da Associaçao Brasileira de Estudos Populacionais. Caxambu, Minas Gerais; 1996. p.2135-58. v.4.

4. Machado MH, Pinto LF. Médicos residentes no Brasil. Artigo apresentado no XXXI Congresso Nacional dos Médicos Residentes. (mimeo). Natal, Rio Grande do Norte; 1996.

5. Pinto LF. Médicos e migraçao: a Residência em foco [dissertaçao]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz; 1999.

6. Campos F, Brito P, Rígoli F. O campo dos recursos humanos para a saúde no Mercosul. In: Recursos Humanos em Saúde no Mercosul (Organizaçao Pan- Americana de Saúde). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1995.

7. Machado MH. Os médicos e sua prática profissional: as metamorfoses de uma profissao [tese]. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; 1996.

1. Escola Nacional de Saúde, Fiocruz.
2. Departamento de Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Nefrologia.
3. Octagon.

Endereço para correspondência:
Departamento de Administraçao e Planejamento em Saúde
Rua Leopoldo Bulhoes, 1480, 7º andar, salas 702/714, Manguinhos
21.041-210, Rio de Janeiro, Brasil

* Artigo elaborado a partir do banco de dados Nefrodata, referente à pesquisa: “Perfil dos nefrologistas no Brasil”, realizado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia, em 1998. Em caráter complementar, foram também utilizados dados da pesquisa “Perfil dos médicos no Brasil”, realizado pela Fundaçao Oswaldo Cruz/Conselho Federal de Medicina, em 1995/96.
** Para maiores detalhes, ver Machado MH et al. Perfil dos Médicos no Brasil. Relatório Final (Médicos em Números). Vol. I. Brasil e Grandes Regioes. Rio de Janeiro: Fiocruz/CFM/MS-PNUD; 1996; e também Machado MH. Os médicos e sua prática profissional: as metamorfoses de uma profissao. [Tese]. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro; 1996.
*** Foram entrevistados 334 nefrologistas cadastrados na Sociedade Brasileira de Nefrologia, no período de setembro de 1998 a fevereiro de 1999. Foram respondidos 183 questionários acessados pelo GER (via Nefrodata) e recebidos 151 pelo Boletim da SBN enviados por mala direta. A Nefrodata processou e produziu os relatórios, cujos dados sao aqui apresentados
**** Ver, a propósito, o artigo de Oliveira e Pinto (1996) que trata da questao da capacidade instalada dos estabelecimentos de saúde no Brasil no período 1980/1992.
***** Em resumo, os homens nefrologistas têm, em média, 43 anos; as mulheres, 39 anos.

Perfil dos nefrologistas no Brasil*

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