J. Bras. Nefrol. 2006;28(2 suppl. 1):36-9.

Abordagem interdisciplinar no manejo da doença renal crônica

Marcus G. Bastos

Interdisciplinary approach in the management of chronic kidney disease

 

Resumo:

A doença renal crônica apresenta alta prevalência na populaçao e se associa com alta morbimortalidade. A complexidade da doença e a freqüente necessidade de múltiplas intervençoes para manter um estado saudável tem estimulado o desenvolvimento de modelos diferentes de cuidados de saúde. No presente trabalho, o autor examina a evoluçao de pacientes expostos a modelos diferentes de manejo da doença renal crônica e apresenta o racional da necessidade da abordagem interdisciplinar para o controle biopsiquicossocial da doença.

Descritores: Doença renal crônica. Prevençao secundária. Abordagem interdisciplinar.

Abstract:

Chronic kidney disease has a high prevalence and has been associated with high morbidity and mortality. Its complexity and the frequent need of several interventions in order to maintain a health state have stimulated different models of management of the disease. In this review, the author examines the outcome of patients managed in different ways and discuss the rational for a interdisciplinary approach to controlling the biopsychosocial aspects of the disease.

Descriptors: Chronic kidney disease. Secondary prevention. Interdisciplinary approach.

 

INTRODUÇAO

A doença renal crônica (DRC) já atingiu proporçoes epidêmicas. O crescimento do número de casos da doença decorre do aumento da prevalência do diabetes mellitus, da obesidade, da maior longevidade do ser humano, concomitantemente aos avanços diagnósticos e terapêuticos da ciência médica. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, a DRC acomete aproximadamente 11% da populaçao adulta1. O número de pacientes com filtraçao glomerular (FG) entre 15 e 59mL/min/1,73m2, ou seja, estágios 3 e 4 da DRC, é cem vezes maior do que o de pacientes em terapia renal substitutiva (TRS)1. Além do mais, um paciente com DRC tem mais chances de evoluir para o óbito decorrente das doenças cardiovasculares do que de se beneficiar da diálise ou transplante renal2.

A otimizaçao do manejo da DRC baseia-se em três pilares: 1. Diagnóstico imediato da doença; 2. Encaminhamento precoce para tratamento nefrológico; e 3. Implementaçao das medidas de preservaçao da funçao renal. O diagnóstico da DRC, particularmente nos seus estágios iniciais, quando ela é freqüentemente assintomática, ficou enormemente facilitado pela aceitaçao praticamente unânime da nova definiçao da doença, proposta pelo grupo de trabalho que compôs o Kidney Disease Outcomes Quality Initiatiative (K/DOQI) da National Kidney Foundation americana3. Assim, por definiçao, é portador de DRC qualquer indivíduo que, por um período >3meses, apresentar filtraçao glomerular <60mL/min/1,73m2, assim como aqueles com FG >60mL/min/1,73m2 e alguma evidência de lesao da estrutura renal (por exemplo, albuminúria). O K/DOQI também propôs estagiar a DRC de acordo com a FG (mL/min/1,73m2) em estágio 1, FG >90, estágio 2, FG 60-89, estágio 3, FG 30-59, estágio 4, FG 15-29 e estágio 5, FG <15, estando ou nao o paciente em TRS 3.

O outro pilar para o manejo otimizado da DRC refere-se à necessidade de encaminhamento imediato dos pacientes para acompanhamento conjunto com equipe nefrológica. Por exemplo, Batista et al4 avaliaram a implementaçao das medidas nefroprotetoras preconizadas pelo K/DOQI e pela Sociedade Brasileira de Nefrologia em pacientes com DRC estágios 3, 4 e 5 em um ambulatório de hipertensao arterial e diabetes. Embora os pacientes fossem acompanhados por clínicos gerais, endocrinologistas e cardiologistas, foi observado que 65% deles apresentavam pressao arterial sistólica >130mmHg e 65% estavam em uso de medicamentos que bloqueiam o eixo renina-angiotensina. Entre os diabéticos, 48% apresentavam controle inadequado da glicemia. Porém o que mais chamou atençao foi a documentaçao das principais complicaçoes da DRC: a dosagem de hemoglobina e a proteinúria, obrigatória nestes pacientes com doença já avançada, foi documentada em somente 28% e 16%, respectivamente, dos prontuários auditados. Além do mais, nao se constatou nenhuma documentaçao relativa aos distúrbios do metabolismo de cálcio e do fósforo, acidose metabólica ou dosagem de albumina. Este estudo é apenas um dos muitos disponíveis na literatura que ilustram como os pacientes com DRC chegam aos nefrologista: tardiamente no curso de suas doenças, com as complicaçoes da doença nao documentadas ou corrigidas, já com comorbidades, particularmente as cardiovasculares, sem confecçao de acesso vascular e sem a mínima noçao sobre as opçoes terapêuticas em caso de necessidade de TRS. Por chegarem tardiamente aos nefrologistas, os pacientes têm mais chance de evoluir para o óbito no primeiro ano de diálise.

O terceiro pilar do manejo ótimo da DRC é a implementaçao das medidas nefroprotetoras, diagnóstico e tratamento das complicaçoes e comorbidades da doença e preparo biopsiquicossocial para TRS5.

Modelos de manejo clínico da DRC

Didadicamente, poderíamos dividir o manejo da DRC em três modelos: 1. Pacientes sem acompanhamento ou com acompanhamento clínico nao nefrológico; 2. Pacientes com acompanhamento nefrológico convencional; e 3. Pacientes com acompanhamento nefrológico interdisciplinar.

Como já mencionado, infelizmente nao é incomum recebermos pacientes com DRC em estágio avançado da doença, já necessitando de tratamento dialítico de urgência ou mesmo de emergência. A DRC nesses pacientes freqüentemente evolui sem que seja diagnosticada em seu início e, mesmo quando isso ocorre, eles sao encaminhados para o nefrologista tardiamente, em fase avançada da doença. Nao existe consenso na literatura sobre o tempo mínimo de acompanhamento nefrológico antes do início da TRS. Alguns autores consideram 3 meses como tempo mínimo necessário, mas talvez 6 meses fosse o mais adequado, e possivelmente 12 meses seria o ideal. Por exemplo, considere a vacinaçao contra o vírus da hepatite B. Nos pacientes com DRC, recomenda-se 4 doses da vacina: a primeira no tempo zero, a segunda após 30 dias, a terceira no sexagésimo dia e a quarta, se ainda nao ocorreu imunizaçao, no sexto mês. Outro exemplo, a confecçao de acesso vascular para hemodiálise. É fácil imaginar ter que se esperar alguns dias entre a solicitaçao do procedimento e a sua autorizaçao, consulta com cirurgiao vascular, marcaçao do centro cirúrgico e, finalmente, a confecçao da fístula arteriovenosa (FAV). Idealmente, a FAV nao deveria ser puncionada por um período mínimo de 60 a 90 dias. Se, porventura, a FAV nao desenvolver, mais 60 a 90 dias, no mínimo, serao necessários entre a realizaçao da nova fístula até sua primeira punçao.

Se o paciente é portador de DRC, progride com falência funcional renal e nao tem acesso a tratamento dialítico, fatalmente evoluirá para o óbito. Os pacientes que sao acompanhados por especialistas nao-nefrologistas, quando conseguem chegar para TRS, geralmente apresentam parâmetros clínicos muito aquém dos desejáveis. Roubicek et al.6 compararam pacientes com DRC com acompanhamento nefrológico precoce (definido por um período >16 semanas do início da TRS) com pacientes com acompanhamento tardio (definido por um período <16 semanas do início da TRS). Os autores observaram que, comparados aos pacientes com acompanhamento tardio, aqueles com acompanhamento precoce por nefrologista permaneceram menos dias hospitalizados quando do início da diálise, necessitaram menos diálise de urgência, a pressao arterial era mais bem controlada, apresentaram menos edema agudo de pulmao, mais freqüentemente iniciavam a diálise com acesso vascular permanente e, conseqüentemente, necessitavam de menos acesso vascular central temporário. Como já mencionado anteriormente, estes pacientes com encaminhamento tardio apresentam 37% mais chances de evoluir para o óbito no primeiro ano do tratamento dialítico.

Contudo, o acompanhamento nefrológico convencional per se nao é garantia de sucesso no manejo da DRC. Por exemplo, Kausz et al.7 realizaram uma análise retrospectiva em prontuários de 602 pacientes com DRC definida como creatinina sérica >1,5mg/dL em mulheres e >2,0mg/dL em homens, no período de outubro de 1994 a setembro de 1998, acompanhados em cinco ambulatórios de nefrologia na área de Boston, Massachusetts, Estados Unidos. Quando da primeira consulta, a média da creatinina e da FG dos pacientes foi de 3,2mg/dL e 22,3mL/min/1,73m2 respectivamente. Trinta e oito por cento dos pacientes apresentavam hematócrito <30% e somente 18% apresentavam estudos da reserva de ferro. Entre os pacientes com hematócrito <30%, somente 59% foram tratados com eritropoetina humana recombinante e, entre estes, somente 47% receberam suplementaçao de ferro. As alteraçoes do metabolismo de cálcio e do fósforo foram observadas em 55% dos pacientes e, mesmo assim, a dosagem do PTH foi realizada em somente 15% dos casos. Adicionalmente, observou-se que o perfil lipídico foi avaliado em menos da metade dos pacientes e o tratamento com inibidor da enzima da conversao da angiotensina foi instituído em 65% dos pacientes com diabetes (49% de todos os pacientes). Finalmente, entre os pacientes que evoluíram para a diálise, somente 41% iniciaram o tratamento com fístula arteriovenosa previamente confeccionada.

O terceiro modelo de manejo da DRC é aquele realizado por equipe interdisciplinar. Na verdade, esta proposta de acompanhamento aos pacientes com DRC nao é uma novidade, tendo sido sugerida em uma reuniao de consenso patrocinada pelo Instituto Nacional de Saúde americano no início da década passada. Até o momento, este modelo tem sido estudado de maneira limitada e os resultados nao sao definitivos.

Há cerca de 10 anos, Levin et al.8 observaram que, comparativamente ao acompanhamento nefrológico convencional, os pacientes seguidos por uma equipe interdisciplinar cursaram com menor necessidade de diálise de urgência, permaneceram menos dias internados no primeiro mês de diálise, bem como houve menor custo de tratamento da doença. Por outro lado, Harris et al.9 avaliaram, em clínicas de cuidados primários, 437 pacientes com DRC divididos, randomicamente, em dois grupos: um grupo foi acompanhado segundo orientaçao interdisciplinar e o outro recebeu cuidados clínicos convencionais. Ao final do estudo, os autores nao observaram diferença entre os grupos no que se refere à preservaçao da FG ou taxa de mortalidade, embora mais recursos tinham sido gastos com os pacientes que receberam orientaçao interdisciplinar. Contudo, neste estudo, o manejo interdisciplinar foi feito por generalistas que realizaram os seus atendimentos seguindo recomendaçoes por escrito. Assim, questiona-se se o fracasso em se demonstrar diferença entre os dois modelos esteja mais relacionado a nao implementaçao das recomendaçoes interdisciplinares do que ao insucesso do modelo.

Mais recentemente, Goldstein et al.10 e Curtis et al.11 compararam o modelo de manejo nefrológico convencional com o interdisciplinar. Em ambos os estudos, os autores demonstraram que os pacientes acompanhados por equipe interdisciplinar apresentaram melhores parâmetros clínicos e bioquímicos no início de diálise, bem como maior sobrevida no período pós-dialítico, comparativamente àqueles que foram manejados convencionalmente por nefrologistas.

Impacto do manejo interdisciplinar na evoluçao da DRC

A explicaçao para resultados melhores do manejo interdisciplinar relativamente ao nefrológico convencional na DRC nao está completamente estabelecida. A premissa básica do modelo de atendimento interdisciplinar é ofertar o expertise de diferente profissionais de saúde a portadores de doenças complexas, como é o caso da DRC. É possível que o aconselhamento nutricional relativo a ingestao de sal, proteína e adequaçao do peso, o reforço freqüente da necessidade de aderência medicamentosa, o esclarecimento sobre a necessidade do controle da pressao arterial, o controle glicêmico nos diabéticos, o auxílio no preenchimento dos formulários para obtençao dos medicamentos de alto custo necessários ao tratamento da anemia e hiperparatireoidismo secundário, o apoio psicológico, a minimizaçao do absentismo às consultas, o aconselhamento antitabágico, a facilitaçao ao acesso a outros especialistas (urologistas, cirurgioes vasculares, cardiologistas, ginecologistas), a confecçao de FAV e o início da diálise em condiçoes mais adequadas constituam intervençoes fundamentais para o sucesso do modelo. A maioria destas tarefas é mais facilmente implementada quando o nefrologista conta com o auxílio da enfermagem, do assistente social, do psicólogo e do nutricionista com treinamento nefrológico. Além do mais, o atendimento interdisciplinar permite diminuir o tempo de atendimento do nefrologista e, assim, permite intensificar o acompanhamento ambulatorial. Por exemplo, no PREVEN-RIM (Quadro 2), o nosso Programa Interdisciplinar de Prevençao Secundária da DRC, os pacientes no estágio 3 da doença sao acompanhados a cada 3 meses; os no estágio 4 a cada 2 meses e os no estágio 5, mensalmente. Com esta estratégia, minimiza-se o tempo de exposiçao dos pacientes aos efeitos deletérios dos fatores de risco de progressao da DRC (hipertensao arterial, proteinúria, hiperglicemia), bem como das suas complicaçoes (anemia, distúrbios do metabolismo de cálcio e do fósforo, acidose metabólica, desnutriçao) e comorbidades (particularmente as cardiovasculares).

CONCLUSAO

Estudos recentes evidenciam a complexidade da DRC e impoem um modelo de atendimento integral aos pacientes. O grande desafio passa a ser ofertar este modelo a todos os pacientes com DRC no Brasil. Para tal, há necessidade de se conduzirem estudos de custo-benefício e assim oferecer dados conclusivos que convençam as nossas autoridades de saúde a financiar este modelo de manejo da DRC.

REFERENCIAS

1. Coresh J, Astor BC, Greene T, Eknoyan G, Levey AS. Prevalence of chronic kidney disease and decreased kidney function in the adult US population: Third National Health and Nutrition Examination Survey. Am J Kidney Dis 2003;41:1-12.

2. Keith DS, Nichols GA, Gullion CM, Brown JB, Smith DH. Longitudinal follow-up and outcomes among a population with chronic kidney disease in a large managed care organization. Arch Intern Med 2004;164:659-63.

3. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification and stratification. Am J Kidney Dis 2002;39(Suppl 2):S1-S246.

4. Batista LKC, Pinheiro HS, Fuchs RC, Oliveira T, Belchior FJE, Calil ACS, et al. Manuseio da doença renal crônica em pacientes com hipertensao e diabetes. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 2005;27:8-14.

5. Bastos MG, Carmo WB, Abrita RR et al. Doença renal crônica: Problemas e soluçoes. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.) 2004;26:202-15.

6. Roubicek C, Brunet P, Huiart L, Thirion X, Leonetti F, Dussol B, et al. Timing of nephrology referral: influence on mortality and morbidity. Am J Kidney Dis 2000;36:35-41.

7. Kausz AT, Khan SS, Abichandani R, Kazmi WH, Obrador GT, Ruthazer R, Pereira BJ. Management of patients with chronic renal insufficiency in the Northeastern United States. J Am Soc Nephrol 2001;12:1501-7.

8. Levin A, Lewis M, Mortiboy P, Faber S, Hare I, Porter EC, Mendelssohn DC. Multidisciplinary predialysis programs: quantification and limitations of their impact on patient outcomes in two Canadian settings. Am J Kidney Dis 1997;29:533-40.

9. Harris LE, Luft FC, Rudy DW, Kesterson JG, Tierney WM. Effects of multidisciplinary case management in patients with chronic renal insufficiency. Am J Med 1998;105:464-71

10. Goldstein M, Yassa T, Dacouris N, McFarlane P. Multidisciplinary predialysis care and morbidity and mortality of patients on dialysis. Am J Kidney Dis 2004;44:706-14.

11. Curtis BM, Ravani P, Malberti F, Kennett F, Taylor PA, Djurdjev O, Levin A. Nephrol Dial Transplant 2005;20:147-54.

Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora; Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia da UFJF e Fundaçao IMEPEN. Departamento de Clínica Médica e Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora e Fundaçao IMEPEN.

Endereço para correspondência:
Marcus G. Bastos
Rua Ivan Soares de Oliveira, 234, Parque Imperial
36036-350, Juiz de Fora, Minas Gerais
E-mail: marcusgb@terra.com.br

Abordagem interdisciplinar no manejo da doença renal crônica

Comentários