J. Bras. Nefrol. 2009;31(1):6-9.

Estudo das Doenças Glomerulares em Pacientes Internados no Hospital Geral César Cals – Fortaleza, Ceará, Brasil

Márcia M.M. Queiroz, Geraldo B. Silva Júnior, Maria do Socorro R. Lopes, José Otho Leal Nogueira, José Walter Correia, Antônio Luiz C. Jerônimo

Study of Glomerular Diseases in Patients Admitted to Hospital Geral César Cals (Fortaleza-CE-Brazil)

 

Resumo:

A biópsia renal percutânea constitui o padrão-ouro para o diagnóstico, prognóstico e tratamento das doenças glomerulares. Estudamos 51 pacientes que foram submetidos à biópsia renal no Hospital Geral César Cals, em Fortaleza, Ceará, Brasil, no período de janeiro de
2000 a dezembro de 2007. Houve predomínio do sexo feminino (57%). A faixa etária mais afetada foi de 20-40 anos. A principal forma de apresentação das glomerulopatias foi a síndrome nefrótica (49%), e o padrão histopatológico mais prevalente nas glomerulopatias primárias foi a glomeruloesclerose segmentar e focal (19%), tendo sido a nefrite lúpica predominante entre as glomerulopatias
secundárias (37%). Tivemos 5,8% de complicações atribuídas à biópsia renal, tendo sido a hematúria macroscópica a principal responsável (3,9%). Estudos mais abrangentes são necessários para traçar o perfil epidemiológico das doenças glomerulares no Estado do Ceará.

Descritores: Biópsia renal. Glomerulopatias. Síndrome nefrótica. Histopatologia.

Abstract:

Renal biopsy is the gold-standard method for diagnosis, prognosis and management of glomerular diseases. We studied 51 patients who underwent renal biopsy in the Hospital Geral Cesar Cals, in Fortaleza, Ceara, Brazil, from January 2000 to December 2007. There
was a predominance of females (57%), and the age group most affected was that of 20-40 years. The main clinical presentation of glomerular diseases was nephrotic syndrome (49%), and the most prevalent histopathological pattern was focal and segmental glomerulosclerosis among primary glomerulopathies (19%) and lupus nephritis among secondary glomerulopathies (37%).
Complications related to the biopsy procedure were seen in 5.8% of cases, and hematuria was the main complication (3.9%). Further studies are required to establish the epidemiology of glomerular diseases in the State of Ceara.

Descriptors: Renal biopsy. Glomerular diseases. Nephrotic syndrome. Histopathology

INTRODUÇÃO

É crescente o surgimento de registros de glomerulopatias em diversos países, inclusive no Brasil. Na Ásia e Oceania, as glomerulonefrites são causa de insuficiência renal em 30%-60% dos pacientes admitidos para tratamento dialítico. Na Europa e nos Estados Unidos, esse valor está entre 10%-15%. No Brasil e Uruguai, cerca de 20% dos pacientes recebem o diagnóstico de glomerulonefrite à admissão para diálise1.

A nefropatia por IgA é a glomerulopatia mais diagnosticada em províncias européias, com incidência de 1,9 paciente/ano/100.000 habitantes na Holanda e 2,7 pacientes/ ano/100.000 na França, já a glomerulopatia membranosa é a segunda mais prevalente nessa população1.

Resultado semelhante foi encontrado em um estudo de Portugal, com a doença de Berger correspondente à maioria dos casos biopsiados2.

Não há dados sobre incidência e prevalência das glomerulopatias no Brasil, onde, como em outras regiões, predominam estudos epidemiológicos de morbidade hospitalar1.

Existem poucos estudos epidemiológicos sobre as doenças glomerulares no Brasil. Recentemente, foi estudado o perfil das glomerulopatias no Estado de São Paulo e no Amazonas1,3.

Frequências elevadas de glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) e nefrite lúpica apontam para a predominância dessas duas formas histológicas entre as glomerulopatias biopsiadas no Brasil1. Em São Paulo, a GESF e a glomerulonefrite membranosa foram as principais glomerulopatias primárias biopsiadas, e a nefrite lúpica, a causa mais comum entre as glomerulopatias secundárias1,4. Um estudo das biópsias renais em hospital de referência de Manaus encontrou resultados semelhantes aos de São Paulo3. Até o momento, não havia estudos na literatura sobre a distribuição das glomerulopatias no Estado do Ceará, o que atribui grande relevância ao presente estudo.

A biópsia renal constitui um instrumento fundamental para o diagnóstico e prognóstico de diversas patologias nefrológicas e sistêmicas2,5,6.

Entre as principais indicações de biópsia renal, temos: a) síndrome nefrótica em pacientes < 1 ano e > 10 anos, b) insuficiência renal aguda de etiologia desconhecida, c) hematúria e proteinúria persistentes e d) insuficiência renal crônica com rins de dimensões conservadas2,7,8.

Entre as contraindicações estão proteinúria não nefrótica isolada, hematúria isolada, rins de tamanho reduzido e hipertensão não controlada7. As principais complicações desse procedimento são hematúria macroscópica, hematoma renal, fístulas arteriovenosas e punção de outros órgãos2,5.

Participando deste esforço para conhecer melhor o comportamento das glomerulopatias em nosso meio, o objetivo deste trabalho foi analisar a distribuição e frequência dos tipos histológicos das glomerulopatias primárias e secundárias em um hospital de referência do Estado do Ceará, no período de 2000 a 2007.

METODOLOGIA

Procedeu-se à análise, retrospectivamente, dos prontuários dos pacientes submetidos à biópsia renal de janeiro de 2000 a dezembro de 2007, no Serviço de Nefrologia do Hospital Geral César Cals, em Fortaleza, Ceará, Brasil.

Analisaram-se sexo, idade, tempo de doença, manifestações clínicas, alterações laboratoriais, medicações em uso, existência de história familiar de nefropatia, resultados histopatológicos das biópsias renais e avaliação das complicações.

Os resultados foram dispostos em tabelas de frequência e expressos como percentagem e como média ± desvio padrão (X ± DP).

RESULTADOS

Realizaram-se, no período do estudo, 51 biópsias renais percutâneas em pacientes internados nesse Serviço.

Desse total, 25 biópsias (49%) tiveram o diagnóstico de glomerulopatias primárias e 26 (51%), de glomerulopatias secundárias. As principais indicações de biópsia renal nesses casos foram: síndrome nefrótica, hematúria persistente, proteinúria não nefrótica persistente e insuficiência renal de etiologia desconhecida associada a estas anormalidades (Tabela 1). Outras indicações menos frequentes foram: perda de função renal sem causa definida e hematúria microscópica.

A idade média dos pacientes foi de 33± 14 anos, variando de 15-71 anos. Vinte e nove pacientes (57%) eram do sexo feminino e 22 (43%), do sexo masculino. O tempo médio de doença foi 17± 25 meses, variando de 1- 120 meses. Cinco pacientes (9,8%) apresentavam história familiar de nefropatia.

As principais manifestações clínicas detectadas nesses pacientes foram: edema, em 31 pacientes (60%), e hipertensão arterial, em 25 (49%), conforme sumarizado na Tabela 2.

O principal diagnóstico sindrômico de apresentação dos pacientes com glomerulopatias primárias foi síndrome nefrótica, sendo a GESF e a glomerulonefrite membranosa as grandes responsáveis por esse quadro.

Entre as alterações laboratoriais encontradas em nossos pacientes, estão proteinúria em 29 pacientes (56%), perda da função renal em 22 (43%), fator antinuclear (FAN) positivo em 15 (29%), consumo do complemento em 14 (27%) e hematúria em 18 (35%), conforme sumarizado na Tabela 3. As médias dos principais exames laboratoriais podem ser vistas na Tabela 4.

 

 

Todos os pacientes analisados estavam em uso de alguma medicação no período da realização das biópsias renais, com 33 pacientes (64%) em uso de corticoide, 17 (33%) em uso de imunossupressores, 29 (56%), de inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA) e três (5,8%) de anti-inflamatórios não hormonais (AINEs).

Os resultados da distribuição dos padrões histopatológicos das 51 biópsias renais revelaram, conforme se vê na Tabela 5, uma maior incidência de lesões glomerulares secundárias, que corresponderam a 26 casos (51%), em detrimento das glomerulopatias primárias com 25 casos (49%).

Na Tabela 5, observa-se que a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF) foi a glomerulopatia primária mais frequente, ocorrendo em dez pacientes (19%), seguida pela glomerulopatia membranosa em sete pacientes (13%) e pela doença de lesões mínimas em quatro pacientes (7,8%). Entre as glomerulopatias secundárias, predominaram os casos de lúpus eritematoso sistêmico (LES), com 19 casos (37%). Já entre as doenças vasculares com comprometimento glomerular, predominaram as vasculites, com a doença de Behcet com um caso (1,9%) e poliarterite nodosa com também um caso (1,9%). A amiloidose foi a doença metabólica mais frequente com dois casos (3,9%), seguida pela glomeruloesclerose diabética em um caso (1,9%).

Em quase todos os casos, chegou-se a um diagnóstico.

Em apenas um caso, o resultado foi inconclusivo.

As sorologias foram feitas em todos os casos, sendo encontrado apenas hepatite B em um caso.

Ressalta-se que não houve casos sérios de complicações pós-biópsia renal e, entre as complicações encontradas, a hematúria macroscópia foi responsável por dois casos (3,9%), investigados através de exame de urina, e o hematoma perirrenal por um caso (1,9%), investigado através de ultrassonografia de controle, totalizando três casos de complicações atribuídas ao procedimento.

DISCUSSÃO

A biópsia renal percutânea constitui um método propedêutico fundamental na prática diária do nefrologista, sendo essencial no diagnóstico das doenças glomerulares, vasculares e túbulo-intersticiais, proporcionando, também, prognóstico e orientando o manuseio das doenças renais5.

Houve predomínio do sexo feminino em nosso estudo, com 29 pacientes (57%), semelhante ao encontrado em estudo de biópsias renais em hospital de referência do Amazonas, onde o sexo feminino correspondeu a 59% do total de pacientes3.

A principal indicação para a biópsia renal foi a síndrome nefrótica, semelhante ao descrito na literatura9.

Glomerulopatias primárias foram encontradas em 25 pacientes (49%), destacando-se neste grupo a GESF em dez pacientes (19%) e, em segundo lugar, a glomerulonefrite membranosa em sete pacientes (13%). Resultados semelhantes foram encontrados em estudo do Amazonas, com 33% dos pacientes com GESF, seguida pela glomerulonefrite membranosa em 20,9% dos participantes da pesquisa3.

No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, essas também foram as duas glomerulopatias primárias mais diagnosticadas em biópsias renais, assim como em Minas Gerais e em estudos em hospitais de São Paulo1. Em estudo realizado na Espanha, incluindo 115 pacientes, a principal glomerulopatia primária foi a nefropatia por IgA, seguida pela GESF9.

Dentre as glomerulopatias secundárias, que corresponderam a 26 casos (51%), a nefrite lúpica foi a principal responsável, com 19 pacientes (37%), seguida pela amiloidose em dois casos (3,9%), o que vem ao encontro de resultados de outros estudos realizados no Brasil (São Paulo e Amazonas)1,3, no Chile10 e em Cuba6, os quais também encontraram na nefrite lúpica a principal causa de glomerulopatia secundária em suas biópsias renais.

A frequência de nefropatia por IgA foi baixa (1,9%), compatível com estudo feito no Amazonas, o qual a encontrou em 3,3% dos casos. É possível que isso se deva ao fato de não se fazer biópsias rotineiramente em pacientes com hematúria assintomática, tendo em vista que a nefropatia por IgA é considerada a glomerulopatia primária mais comum em todo o mundo1,3.

Assim como relatado em outros trabalhos6,9, a principal forma de apresentação das enfermidades glomerulares em nosso estudo, e que também constituiu a principal indicação de biópsia renal, foi a síndrome nefrótica.

Diante das raras complicações atribuídas ao procedimento, conclui-se que a biópsia renal é segura, simples e extremamente eficaz10. Em nosso estudo, houve três casos de complicações (5,8%), o que é compatível com a literatura, que considera um percentual de 0,7%- 8%, excluindo-se hematúria microscópica, a qual é vista em praticamente todos os pacientes10. Tivemos dois casos (3,9%) de hematúria macroscópica e um caso (1,9%) de hematoma perirrenal, resultados também condizentes com os encontrados na literatura2,6.

CONCLUSÃO

Constatamos que, na nossa casuística, a GESF foi a lesão glomerular primária mais frequente, e o lúpus eritematoso sistêmico foi a doença de base mais comumente diagnosticada nos casos de glomerulopatias secundárias.

A síndrome nefrótica foi a forma de apresentação mais frequente entre as enfermidades glomerulares e a hematúria macroscópica foi a principal complicação atribuída à biópsia renal em nosso estudo.

Embora a realização desta pesquisa seja de grande valia para o estudo das doenças glomerulares, estudos mais abrangentes são necessários para traçar o perfil epidemiológico dessas doenças no Estado do Ceará.

REFERÊNCIAS

1. Bahiense-Oliveira M, Malafronte P. Epidemiologia das glomerulopatias. In: Barros RT, Alves MAR, Dantas M, Kirsztajn GM, Sens YAS, editores. Glomerulopatias: patogenia, clínica e tratamento. 2. ed. São Paulo: Sarvier; 2006, p. 55-63.

2. Castro R, Sequeira MJ, Faria MS, Belmira A, Sampaio S, Roquete P, et al. Biópsia renal percutânea: experiência de oito anos. Acta Med Port. 2004;17:20-6.

3. Cardoso ACD, Kirsztajn GM. Padrões histopatológicos das doenças glomerulares no Amazonas. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.). 2006; 28:39- 43.

4. Malafronte P, Mastroianni-Kirstajn G, Betônico GN, Romão Jr JE, Alves MA, Carvalho MF, et al. Paulista registry of glomerulonephritis: 5-year data report. Nephrol Dial Transplant.

2006;21:3098-105.

5. Lasmar EP. Biópsia renal percutânea: experiência pessoal em 30 anos. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.). 2007;29:25-8.

6. Pérez RP, Vidal JE, Peláez RP, Mendes PCA, Rubin AB, Mendes MAA. Biópsia renal percutânea em enfermidades glomerulares. Mom Perspec Saude (Porto Alegre). 2004; 17:20-4.

7. Mota PC. Indicações actuais para biópsia renal. Acta Med Port. 2005;18:147-51.

8. Sociedade Brasileira de Nefrologia. Indicações de biópsia renal em glomerulopatias. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.). 2005;27(Supl 1):6.

9. Cuxart M, Picazo M, Sans R, Huerta V. Biopsia renal en un hospital comarcal. Nefrología. 2007;27:519.

10. Silva M, Leyton R, Cabezón A, Valenzuela A, Ortiz F, Escalona A, et al. Biopsia renal percutánea ecodirigida en FUSAT. Rev Chil Urol. 2004;69:76-8.

1Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará – UECE, Fortaleza, CE, Brasil. Trabalho de conclusão de
curso., 2Residente de Nefrologia do Hospital Universitário Walter Cantídio, Universidade Federal do Ceará – UFC, Fortaleza, CE,
Brasil, 3Médica do Hospital Agamenon Magalhães. Recife, PE, Brasil, 4Preceptor da Residência de Clínica Médica do Hospital
Geral César Cals, Fortaleza, CE, Brasil, 5Chefe do Serviço de Clínica Médica do Hospital Geral César Cals, Fortaleza, CE, Brasil,
6Nefrologista do Hospital Geral César Cals, Fortaleza, CE, Brasil.

Endereço para correspondência:
Geraldo Bezerra da Silva Júnior
Rua Mário Alencar Araripe 61
60833-500. Fortaleza, CE, Brasil.
Tel.: (85) 3239-4660, (85) 9982-2218
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