J. Bras. Nefrol. 2009;31(1):32-8.

Hiperuricemia: Um Marcador para Doença Renal Crônica Pré-Clínica?

Rita Maria Rodrigues Bastos, Maria Teresa Bustamante Teixeira, Alfredo Chaoubah, Ricardo Villela Bastos, Marcus Gomes Bastos

Hyperuricemia: A Marker of Preclinical Chronic Kidney Disease?

Resumo:

Introdução: Os níveis séricos de ácido úrico aumentam na doença renal crônica (DRC), contudo o impacto desta observação clínica na história natural da doença ainda não está elucidado. Objetivo: Testar a hipótese de que níveis elevados de ácido úrico em indivíduos com função renal preservada se associam com maior prevalência de DRC. Material e métodos: O estudo foi realizado a partir dos dados clínicos (sexo e idade) e laboratoriais (creatinina e ácido úrico) obtidos em um laboratório de análises clínicas em dois períodos distintos: basal (2000-2003) e de avaliação (2004-2005). A filtração glomerular estimada (FGe) foi calculada pela fórmula do estudo MDRD. A DRC foi definida seguindo as recomendações do KDOQI da NKF americana, ou seja, dois resultados de FGe <60mL/min/1,73m2, num período ≥3meses. O ácido úrico (expresso em mg/dL) foi analisado pela separação dos indivíduos em normouricêmicos e hiperuricêmicos e pela divisão da distribuição da amostra em quartis. Resultados: Do total de 4.991 indivíduos avaliados no período basal, 4.041 (90,0%) apresentavam FG >60mL/min/1,73m2. Os indivíduos hiperuricêmicos (homens, mulheres, com menos de 60 anos e idosos) apresentaram maior risco relativo para DRC do que os normouricêmicos. Também foi observado que os grupos de indivíduos com ácido úrico mais elevado apresentaram maior prevalência de DRC no período basal (ácido úrico/FGe: <4,0/16,3%; 4,1-5,1/21,2%; 5,2-6,7/ 28,6%; >6,7/34,0%; p <0,001). A prevalência de DRC no período de avaliação também foi maior nos grupos de indivíduos com níveis mais elevados de ácido úrico (ácido úrico/FG: <4,0/22,3%; 4-5,1/26,9%; 5,2-6,7/28,5%; >6,7/22,3%; p <0,05). Conclusão: Em indivíduos não portadores de DRC, níveis elevados de ácido úrico sérico se associam com maior prevalência da doença e parecem identificar um estado “pré-clínico” de disfunção renal.

Descritores: Hiperuricemia. Doença renal crônica. Filtração glomerular.

Abstract:

Introduction: High serum uric acid levels are common in patients with chronic kidney disease (CKD), however, the impact of this observation on the natural history of the disease has yet to be established. Aim: We tested the hypothesis that higher uric acid levels associate with higher prevalence of CKD. Material and methods: Clinical (sex and age) and laboratory (serum creatinine and uric acid) data were obtained in two different periods: baseline (2000 to 2003) and assessment (2004 and 2005). The glomerular filtration rate (GFR) was estimated using the abbreviated Modification of Diet in Renal Disease Study formula based on serum creatinine, age and sex. CKD was defined as proposed by the National kidney Foundation and Brazilian Society of Nephrology, that is, two GFRs <60ml/min/1,73m2, for three or more months. Uric acid levels (in mg/dL) were analysed by the stratification of the subjects, at the baseline, in a hyperuricemic and normouricemic state and by the categorization in quartiles. Results: Among 4,991 subjects assessed in the baseline period, 4,041 (90.0%) presented GFR >60 mL/min/1,73m2. Hyperuricemic subjects (men, women, young, and elderly) presented higher relative risk for CKD than those who where normouricemic. An association between higher levels of uric acid and higher prevalence of CKD in this period (uric acid/GFR: <4.0/16.3%; 4.1-5.1/21.2%; 5.2-6.7/ 28.6%; >6.7/34.0%; p <0.001) was also observed).
The prevalence of CKD in the assessment period was also higher among those subjects with higher uric acid levels (uric acid/GFR: <4.0/22.3%; 4-5.1/26.9%; 5.2-6.7/28.5%; >6.7/22.3%; p <0.05). Conclusion: In subjects without CKD, higher levels of serum uric acid associated with a higher prevalence of the disease, and seemed to identify a “preclinical” state of kidney dysfunction.

Descriptors: Hyperuricemia. Chronic kidney disease. Glomerular filtration rate

 

INTRODUÇÃO

O número de pacientes com falência funcional renal (FFR) que necessitam de diálise ou de transplante renal está aumentando em todo o mundo. Evidências atuais têm sugerido que o diagnóstico e a implementação de medidas nefroprotetoras precoces podem interromper ou retardar a progressão da DRC1,2.

A hiperuricemia é um problema metabólico comum, que tem sido observado ao longo de várias décadas.

Os principais problemas clínicos associados à hiperuricemia são a artrite gotosa, os tofos de ácido úrico e os cálculos renais3. Durante décadas, estes problemas médicos foram as principais indicações para a manutenção dos níveis do ácido úrico sanguíneo na faixa da normalidade.

Contudo, nos últimos anos, resultados originados de estudos epidemiológicos e em animais evidenciaram a importância da hiperuricemia na ocorrência da doença renal crônica (DRC), doença coronariana e na hipertensão arterial4.

A FFR, as doenças cardiovasculares e a morte prematura são desfechos adversos da DRC que podem ser prevenidos pela identificação imediata e tratamento das complicações e comorbidades associados à doença1,2,5.

Até o momento, poucos estudos epidemiológicos têm explorado o possível papel da hiperuricemia como marcador precoce da DRC. No presente trabalho, os autores testaram as hipóteses da associação entre a hiperuricemia e a DRC e se o nível elevado de ácido úrico pode ser um marcador precoce da doença em indivíduos com filtração glomerular (FG) ainda preservada.

MATERIAL E MÉTODOS Este trabalho foi realizado através de uma análise dos registros de usuários de um laboratório da rede particular do Município de Juiz de Fora, MG, no período de janeiro de 1995 a dezembro de 2005. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora.

O laboratório pertence à rede particular do Município de Juiz de Fora e não é conveniado ao Sistema Único de Saúde. É certificado pela norma ISO 9000:2000 e pelo PALC (Programa de Acreditação para Laboratórios Clínicos).

Foram obtidos de indivíduos não hospitalizados os seguintes dados referentes ao período de janeiro de 2000 a dezembro de 2005: Ordem de Serviço (OS), data de realização da OS, código de identificação e especialidade do profissional que solicitou o exame, código de identificação do indivíduo, sexo, data de nascimento e dosagem de creatinina sérica e ácido úrico. Os achados da análise deste banco de dados relativos à função renal em toda a mostra foram publicados recentemente6.

Os critérios de inclusão utilizados foram: idade acima de 18 anos, com registros adequados de identificação, sexo, data de nascimento, data da realização do exame e dosagem sérica da creatinina e do ácido úrico.

A creatinina sérica no referido laboratório foi determinada utilizando-se o método cinético-colorimétrico, no aparelho BECKMAN CX4. A faixa de normalidade varia de 0,4 a 1,3mg/dL. O ácido úrico foi determinado pelo método enzimático- colorimétrico, em aparelho BECKMAN CX4, sendo a faixa de normalidade de 1,5 a 5,9mg/dL para o sexo feminino e 2,5 a 6,9mg/dL para o sexo masculino.

A FG foi estimada pela equação do estudo MDRD (Modification of Diet in Renal Disease) na sua versão simplificada, que leva em consideração as variáveis creatinina sérica (scr), idade (em anos) e sexo7. Esta equação utiliza um fator de correção para negros americanos que não foi considerado neste estudo devido ao inexpressivo número de indivíduos com esta característica racial entre a população brasileira, particularmente na Zona da Mata Mineira8. A fórmula escolhida tem como vantagem fornecer um ajuste para variações substanciais de fatores relacionados à produção de creatinina, como idade, sexo e superfície corporal9.

Equação do estudo MDRD (expressa em mL/min/1,73m2)= FG= 186x(scr)-1,154x(idade)-0,203×0,742(se mulher)x1,21(negro americano) A DRC foi definida segundo as recomendações da Fundação Nacional do Rim americana (NKF)1 e da Sociedade Brasileira de Nefrologia, ou seja, dois valores de FG <60mL/min/ 1,73m2 obtidos em intervalo igual ou superior a três meses1,10.

A análise dos registros foi realizada em dois períodos distintos: Período basal (2000 a 2003) e período de avaliação (2004 a 2005). No período basal, foram identificados 4.991 indivíduos que contemplaram os critérios de inclusão. A avaliação da associação do ácido úrico com a DRC foi realizada por meio da divisão dos participantes, no período basal, de acordo com o sexo e idade (variáveis que compõem a equação do MDRD utilizada na estimativa da FG) e níveis de ácido úrico sérico: normouricemia (ácido úrico sérico <6,0mg/dL na mulher e <7,0mg/dL no homem) e hiperuricemia (ácido úrico sérico ≥6,0mg/dL na mulher e ≥7,0mg/dL no homem). Em seguida, procedeu-se à análise da correlação entre os quartis de ácido úrico numa coorte de indivíduos não portadores de DRC, ou seja, com FG >60mL/min/1,73m2 no período basal, e a ocorrência de DRC no período de avaliação.

Os dados são representados por frequência relativa, média e desvio-padrão. Aanálise estatística foi realizada utilizando o teste Qui-quadrado, sendo considerado um nível de significância de 95%. Foi calculado o Risco Relativo com intervalo de confiança de 95%. Os cálculos foram realizados utilizando o programa SPSS v 13.0, (SPSS Inc., Chicago, Illinois, USA).

RESULTADOS

No período basal, foram avaliados 4.991 indivíduos que preencheram os critérios de inclusão no estudo e, destes, 950 (10,0%) apresentavam FG <60mL/min/1,73m2 e 4.041 (90,0%), FG ≥60mL/min/1,73m2. A maioria dos indivíduos (54%) era do sexo feminino, dos quais 70,5% apresentavam menos de 60 anos de idade e 29,5% idade ≥60 anos. Entre os homens (46% da amostra), 60,6% apresentavam idade menor que 60 anos e 39,4% idade ≥60 anos.

As médias (±desvio padrão) da creatinina sérica, FG e de ácido úrico sérico foram, respectivamente, 1,0±0,5mg/ dL, 75,1±19,7mL/min/1,73m2 e 4,6±1,5mg/dL em todas as mulheres e 1,2±0,6mg/dL, 80,6±19,9mL/min/1,73m2 e 6,3±1,6mg/dL em todos os homens. Nos indivíduos com idade <60 anos, as médias (±desvio padrão) da creatinina sérica, FG e do ácido úrico sérico foram, respectivamente, 1,0±0,5mg/dL, 82,7±19,7mL/min/1,73m2 e 5,2±1,8mg/dL e 1,1±0,6mg/dL, 68,6±16,9mL/min/1,73m2 e 5,5±1,7mg/dL nos participantes idosos, ou seja, idade ≥60 anos.

Nos indivíduos sem evidência de DRC, ou seja, com FG ≥60mL/min/1,73m2, as médias (±desvio padrão) da creatinina sérica, FG e do ácido úrico sérico foram, respectivamente, 0,9±0,1mg/dL, 81,9±16,9mL/min/ 1,73m2 e 4,4±1,4mg/dL nas mulheres, 1,0±0,2mg/dL, 85,1± 16,9mL/min/1,73m2 e 6,2±1,6mg/dL nos homens, 1,0±0,2mg/dL, 85,6±17,7mL/min/1,73m2 e 5,1±1,8mg/ dL nos participantes com menos de 60 anos e 1,0±0,2mg/dL, 77,8±13,4mL/min/1,73m2 e 5,3±1,7mg/ dL nos idosos.

No grupo composto de indivíduos com DRC, ou seja, com FG <60mL/min/1,73m2, as médias (±desvio padrão) da creatinia sérica, FG e do ácido úrico sérico foram, respectivamente, 1,2±1,0mg/dL, 52,7±7,9mL/min/ 1,73m2 e 5,4±1,6mg/dL nas mulheres, 1,7±1,3mg/dL, 51,0± 10,6mL/ min/1,73m2 e 7,2±1,7mg/dL nos homens, 1,4± 1,3mg/dL, 51,3±9,6mL/min/1,73m2, 5,9±1,9 mg/dL nos participantes com menos de 60 anos e 1,3±1,0mg/dL, 52,5±8,6mL/ min/1,73m2 e 5,9±1,8mg/dL nos idosos (Tabela 1).

A Figura 1 apresenta a análise do impacto clínico dos níveis séricos de ácido úrico no período basal sobre a FG no período de avaliação em indivíduos do sexo masculino não portadores de DRC. No que tange aos homens com normouricemia (ácido úrico <7,0mg/dL), os com hiperuricemia (ácido úrico ≥7mg/dL) apresentaram risco relativo (IC95%) de 2,3 (1,5;3,7) para DRC, o qual foi de 3,7 (1,6;8,7) naqueles com menos de 60 anos e 2,2 (1,3;3,9) nos participantes com idade ≥60.

Figura 1. Incidência da doença renal crônica (DRC) em homens no período de avaliação (2004-2005) de acordo com os níveis de ácido úrico e idade no período basal em indivíduos sem doença renal (2000-2003).

A Figura 2 apresenta os resultados do impacto clínico da hiperuricemia no período basal sobre a ocorrência de DRC no período de avaliação em mulheres com função renal preservada, ou seja, FG >60mL/min/ 1,73m2. Com Relação às mulheres com normouricemia, as com hiperuricemia apresentaram risco relativo (IC95%) de 2,8 (2,1;3,7) para DRC, o qual foi de 2,7 (1,7;4,3) naquelas com menos de 60 anos e 2,2 (1,5;3,2) nas com idade ≥60.

Figura 2. Incidência de doença renal crônica (DRC) em mulheres no período de avaliação (2004-2005) de acordo com os níveis de ácido úrico e idade no período basal em indivíduos sem doença renal (2000-2003).

A Tabela 2 apresenta a análise da correlação entre os níveis séricos de ácido úrico estratificado em quartis no período basal nos 4.991 pacientes e a ocorrência de DRC no período de avaliação. Como pode ser observado, o percentual de indivíduos com níveis mais baixos de ácido úrico é maior no grupo de indivíduos com FG ≥60mL/ min/1,73m2, enquanto que, no grupo de indivíduos portadores de DRC (FG <60mL/min/1,73m2), ocorre o contrário, ou seja, existe uma maior concentração de pacientes com níveis mais elevados de ácido úrico (p <0,001).

 

Finalmente, a análise do impacto dos níveis séricos de ácido úrico sobre a FG, contudo restrita apenas aos indivíduos não portadores de DRC no período basal, mostrou que aqueles que se encontravam nos quartis mais baixos de ácido úrico sérico no período basal apresentaram uma menor frequência de DRC no período de avaliação, enquanto os indivíduos agrupados nos quartis mais elevados no período basal apresentaram maior prevalência de DRC no período de avaliação (p <0,005).

DISCUSSÃO

A hiperuricemia é um achado frequente em pacientes portadores de DRC, mas o seu papel causal na doença geralmente não tem sido considerado. No presente trabalho, avaliamos a hipótese de que níveis elevados de ácido úrico se associam com maior risco de ocorrência de DRC. Para tal, utilizamos a estratégia de analisar um banco de dados laboratoriais de indivíduos ambulatoriais com informações sobre creatinina sérica, ácido úrico sérico, além de sexo e idade.

A análise foi feita em dois períodos, um basal (2000 a 2003) e outro denominado de avaliação (2004 e 2005). Foi observado que os homens, as mulheres e os participantes idosos ou com idade <60 anos hiperuricêmicos apresentaram maior risco de desenvolver DRC do que os normouricêmicos. A análise da amostra estratificada em quartis também evidenciou que, no período basal, os indivíduos (analisados como um todo) e os integrantes do grupo não portador de DRC (FG >60mL/min,1,73m2) e com níveis de ácido úrico sérico mais elevados também apresentaram maior incidência de DRC no período de avaliação.

A análise conjunta dos dados sugere que a hiperuricemia identifica um estado de DRC pré-clínica, definido como condição clínica que antecede o desenvolvimento da doença clínica e que está diretamente associado com desfechos adversos na saúde do paciente11.

O ácido úrico é o produto final do metabolismo da purina em seres humanos. A purina pode ser gerada a partir de fontes endógenas, pela síntese de novo e degradação de ácidos nucléicos (aproximadamente 600mg/dia), ou de exógenas, a partir da ingestão de purina da dieta (aproximadamente 100mg/dia).

No estado de equilíbrio, a produção e a ingestão diária de ácido úrico de cerca de 700mg/dia são balanceadas pela eliminação de quantidade igual de ácido úrico, sendo cerca de 30% através do intestino e 70% (aproximadamente 500mg/dia) pelos rins. O urato plasmático é filtrado livremente pelos glomérulos, mas a excreção fracional do ácido úrico filtrado é inferior a 10%. Isto demonstra a preponderância dos processos de reabsorção tubular em seres humanos, realizados principalmente pela proteína transportadora denominada URAT1 presente no túbulo contornado proximal.

A ocorrência de hiperuricemia, geralmente decorrente da diminuição da excreção fracional do ácido úrico pelos rins ao longo dos anos ou décadas, gera um aumento da quantidade de ácido úrico no organismo, favorecendo a deposição de urato não só nas articulações, mas também em outros tecidos, principalmente os rins, e no endotélio vascular12,13.

Até recentemente, a associação da hiperuricemia com o rim se restringia quase que exclusivamente às obstruções secundárias a cálculos do trato urinário ou deposição intratubular de ácido úrico decorrente da lise tumoral associada à quimioterapia. Contudo, estudos epidemiológicos em humanos, bem como em modelos animais de hiperuricemia leve determinando alterações microvasculares nas areríolas aferentes glomerulares, descortinaram para o possível efeito direto do urato na patogênese da DRC14-16.

Os nossos resultados estão de acordo com estas observações, posto que os níveis séricos de ácido úrico mais elevados no período basal do estudo se associaram fortemente com a ocorrência da DRC no período de avaliação, mesmo nos indivíduos com função renal preservada.

A relação causal primária do papel do urato na DRC foi questionada durante muito tempo devido à concomitância de outras doenças e fatores de risco comumente observados nestes pacientes e que contribuem para perda funcional renal, tais como hipertensão arterial, diabetes mellitus, abuso de bebidas alcoólicas, anti-inflamatórios não esteróides e toxicidade por chumbo.

Embora o desenho do nosso estudo, uma vez que não tivemos acesso aos dados clínicos e de exame físico dos participantes, não nos permita excluir o possível impacto destas doenças ou fatores de risco nos nossos resultados, é importante observar que a associação de níveis mais elevados de ácido úrico com a ocorrência da DRC encontrada está de acordo com os achados de outros autores que sugerem um papel patogênico para hiperuricemia na DRC. Por exemplo, no período que antecedeu a disponibilidade terapêutica eficaz de diminuição da hiperuricemia, até 40% dos pacientes com gota apresentavam diminuição da FG17. Nos estudos desta época, 18% a 25% dos óbitos em pacientes com gota decorreram da FFR18.

Mais recentemente, dois grandes estudos populacionais prospectivos oriundos do Japão examinaram a relação entre níveis de urato sérico e desenvolvimento da doença renal após ajustes para idade, pressão arterial, índice de massa corporal, proteinúria, hematócrito, hiperlipidemia, glicemia de jejum e creatinina sérica. No estudo de Tomita e cols14., 49.413 ferroviários com idade entre 25 e 60 anos foram acompanhados por um período médio de 5,4 anos. Os autores encontraram uma correlação forte, após os ajustes realizados, entre níveis séricos de urato e FFR, sendo que os indivíduos com os valores mais elevados de urato (8,5mg/dL) apresentaram risco de falência renal oito vezes maior do que aqueles com níveis moderados de hiperuricemia (5,0 a 6,4mg/dL).

Izeki e cols.15 rastrearam 48.177 japoneses adultos e calcularam a incidência cumulativa de FFR de acordo com os quartis de ácido úrico sérico basais e estratificação para o sexo. Os níveis basais de urato sérico foram 6,4±1,4mg/dL nos homens e 4,64±1,1mg/dL nas mulheres.

A incidência de FFR para cada 1.000 indivíduos rastreados foi de 1,22 para homens sem hiperuricemia (urato <7,0mg/dL) versus 4,64 para homens com hiperuricemia (urato ≥7,0mg/dL). Nas mulheres, as incidências por 1.000 rastreadas foram 0,87 para aquelas sem hiperuricemia (urato <6,0mg/dL) versus 9,03 para as que apresentavam hiperuricemia (urato ≥6,0mg/dL). Os autores concluíram que a hiperuricemia se associou com maior risco de FFR, mesmo após ajustes para as comorbidades.

Também sugeriram que a normalização dos níveis elevados de urato pode reduzir a sobrecarga de pacientes com FFR.

A natureza do nosso trabalho, com acesso apenas a dados de idade, sexo, creatinina e ácido úrico sanguíneos, não nos permite determinar a(s) causa(s) da hiperuricemia nos indivíduos analisados. Além da diminuição da FG, outros fatores podem determinar níveis elevados de ácido úrico sérico, tais como depleção de volume, ingestão abusiva de álcool, dieta rica em purina e doenças tais como gota19.

A hiperuricemia frequentemente se associa com a hipertensão arterial e é considerada um indicador mais sensível de lesão hipertensiva de órgão alvo do que o nível de creatinina sérico20. O acesso limitado às informações clínicas dos participantes do nosso estudo impossibilita o estabelecimento de qualquer relação dos níveis de ácido úrico sérico com fatores de risco de progressão da DRC, como, por exemplo, a hipertensão arterial.

O nosso estudo apresenta algumas limitações importantes. Primeiro, o seu desenho só nós permitiu acesso aos dados demográficos (idade e sexo) e laboratorias (creatinina e ácido úrico sanguíneos) dos indivíduos avaliados, não nos sendo possível analisar o impacto de outras alterações laboratoriais como hiperglicemia, hiperlipidemia e hiperfosfatemia na gênese da DRC. Segundo, a falta de acesso aos dados de proteinúria não nos permitiu excluir, com certeza, a DRC nos indivíduos com FG >60mL/min/1,73m2. Terceiro, a natureza retrospectiva do estudo e a infrequência de registro no banco de dados do Laboratório das indicações dos pedidos laboratoriais dificultaram a análise das possíveis indicações dos pedidos de creatinina e ácido úrico e, assim, saber sobre a concomitância das doenças e/ou fatores de risco para DRC. Finalmente, o curto intervalo de tempo entre os períodos basal e de avaliação utilizado na nossa análise pode ter subestimado o impacto desfavorável do ácido úrico sanguíneo na filtração glomerular.

Em suma, os nossos resultados sugerem que níveis elevados de ácido úrico sérico se associam com maior prevalência de DRC. O achado de maior prevalência de DRC no período de avaliação entre os indivíduos sem a doença no período basal sugere ser o ácido úrico um marcador precoce disfunção renal.

Embora não nos tenha sido possível analisar o papel de outras doenças/fatores de risco para DRC, tais como proteinúria, hiperlipidemia, diabetes mellitus e hipertensão arterial, a implementação de estratégias que mantenham o ácido úrico em níveis normais talvez seja recomendada na prevenção da doença renal. Estudos intervencionais futuros com medicações estabelecerão se a normalização da hiperuricemia prevenirá a perda funcional renal.

REFERÊNCIAS

1. K/DOQI clinical practice guidelines for chronic kidney disease: evaluation, classification and stratification. Am J Kidney Dis. 2002;39(2 Suppl 1):S1-246.

2. Bastos MG, Carmo WB, Abrita RR, Almeida EC, Mafra D, Costa DMN, et al. Doença renal crônica: problemas e soluções. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.). 2004;26:202-15.

3. Mandel BF. Clinical manifestations of hyperuricemia and gout. Cleve Clin J Med. 2008;75(Suppl 5):S5-8.

4. Nakagawa T, Kang D-H, Feig D, Sanchez-Lozada LG, Srinivas TR, Sautin Y, et al. Unearthing uric acid: An ancient factor with recently found significance in renal and cardiovascular disease. Kidney Int. 2006;69:1722-5.

5. Zandi-Nejad K, Brenner BM. Strategies to retard the progression of chronic kidney disease. Med Clin N Am.
2005;89:489-509.

6. Bastos RMR, Bastos MGB, Teixeira MTB. Prevalência da doença renal crônica, nos estágios 3, 4 e 5, em adultos. Rev Assoc Med Bras. [aceito para publicação].

7. Levey AS, Bosch JP, Lewis JB, Greene T, Rogers N, Roth D.A more accurate method to estimate glomerular filtration rate from serum creatinine: a new prediction equation.Modification of Diet in Renal Disease Study Group. Ann Intern Med. 1999;130:461-70.

8. Bastos RMR, Bastos MG. Tabela de cálculo imediato de filtração glomerular. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.). 2005;27:40-1.

9. Stevens LA, Coresh J, Greene T, Levey AS. Assessing kidney function: measured and estimated glomerular filtration rate.New Engl J Med. 2006;354:2473-8.

10. Romão Jr JE. Doença renal crônica: definição, epidemiologia e classificação. Braz. J. Nephrol. (J. Bras. Nefrol.). 2004;26(3Supl 1):1-3.

11. Shlipak MG, Katz R, Sarnak MJ, Fried LF, Newman AB, Stehman-Breen C, et al Cystatin C and prognosis for cardiovascular and kidney outcomes in elderly persons without chronic kidney disease. Ann Intern Med.2006;145:237-46.

12. Richards J, Weinman EJ. Uric acid and renal disease. J Nephrol. 1966;9:160-6.

13. Krishnan E, Baker JF, Furst DE, Schumacher HR Jr. Gout and the risk of acute myocardial infarction. Arthritis Rheum.2006;54:2688-96.

14. Tomita M, Mizuno S, Yamanaka H, Hosoda Y, Sakuma K, Matuoka Y, et al. Does hyperuricemiaa affect mortality? A prospective cohort study of Japanese male workers. J Epidemiol. 2000;10:403-9.

15. Iseki K, Ikemiya Y, Inoue T, Iseki C, Kinjo K, Takishita S.Significance of hyperuricemia as a risk factor for developing ESRD in a screened cohort. Am J Kidney Dis. 2004;44:642- 50.

16. Mazzali M, Hughes J, Kim YG, Jefferson JA, Kang DH, Gordon KL, et al. Elevated uric acid increases blood pressure in the rat by a novel crystal-independent mechanism.Hypertension. 2001;38:1101-6.

17. Wu XW, Muzny DM, Lee CC, Caskey CT. Two independent mutational events in the loss of urate oxidase during hominoid evolution. J Mol Evol. 1992:34:78-84.

18. Oda M, Satta Y, Takenaka O, Takahata N. Loss of urate oxidase activity in hominoids and its evolutionary implications. Mol Biol Evol. 2002;19:640-53.

19. Rose BD. Pathophysiology of renal disease. 2. ed. New York: McGraw-Hill; 1987. p. 418-25.

20. Johnson RJ, Feig DI, Kang DH, Herrera-Acosta J. Resurrection of uric acid as a causal risk factor for essential hypertension. Hypertension. 2005;45:18-20.

Programa de Pós-Graduação em Saúde da Faculdade de Medicina da UFJF; Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva:
NATES da UFJF; Departamento de Estatística da UFJF; Laboratório Cortes Villela; Núcleo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas
e Tratamento das Doenças Renais – NIEPEN – da UFJF e Fundação IMEPEN.

Endereço para correspondência:
Marcus G. Bastos
NIEPEN
Rua José Lourenço Kelmer 1.300
Bairro São Pedro – Juiz de Fora – MG, Brasil
36036-330

Hiperuricemia: Um Marcador para Doença Renal Crônica Pré-Clínica?

Comentários